domingo, dezembro 30, 2007

O LIVRO BRANCO DAS RELAÇÕES LABORAIS - PRIMEIRA LEITURA

O Livro Branco das Relações Laborais (LBRL), que pode ler aqui, é «o trabalho mais profundo feito em Portugal sobre o mundo do trabalho», como escreveram Isabel Vicente e Nicolau Santos, em “O fim dos mitos laborais”, no Expresso, de 22-12-2007. Podemos e devemos formular críticas e manifestar discordâncias, mas não podemos ignorá-lo na análise prospectiva do futuro. Admitindo que terei de voltar a ele, quero deixar algumas notas resultantes de uma primeira leitura.
O LBRL tem o grande mérito de ser um contributo fundamental para avaliar a forma como em concreto se processam as relações laborais, desfazendo alguns mitos a esse respeito, como se sublinha no já referido artigo, mas formula além disso um conjunto de propostas de alteração ao Código de Trabalho (CT), que terão de ser analisadas e discutidas.
Considero que é positiva a alteração proposta para o art. 4.º do CT. Mantém a possibilidade das normas legais reguladoras dos contratos de trabalho poderem ser afastadas por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, salvo quando delas resultar o contrário. Acrescenta, porém, que as normas relativas a um amplo conjunto de matérias só podem ser afastadas por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho em sentido mais favorável aos trabalhadores. As normas legais reguladoras dos contratos de trabalho só podem ser afastadas por contrato individual quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador e se delas não resultar o contrário. Estas normas são completadas com a proposta de nova redacção para o art. 531.º no sentido de que as disposições dos instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho só podem ser afastadas por contrato de trabalho quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador.
Uma alteração positiva foi a de consagrar o limite de três anos para os contratos de trabalho a termo certo, impossibilitando que possam atingir seis anos, como acontecia actualmente, de acordo com o previsto no n.º 2 do art. 139.º do CT.
Um aspecto central do LBRL que merece uma análise crítica mais detalhada é o conjunto de propostas relativas à temática da flexibilidade interna, que abrange as matérias referentes ao tempo de trabalho, à mobilidade funcional e geográfica, em que se pretende deixar uma grande margem de intervenção à contratação colectiva e ao contrato individual de trabalho.
Em matéria de flexibilidade externa, o LBRL, procura flexibilizar respeitando a proibição constitucional de despedimento sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos. As propostas que formula para a simplificação dos procedimentos em matéria de despedimento com invocação de justa causa, com novas regras relativas à acção de impugnação do despedimento, devem ser seriamente ponderadas. Em matéria de extinção do posto de trabalho, o LBRL deveria procurar por termo à controvérsia jurisprudencial relativa à possibilidade e à forma de recurso ao procedimento cautelar de suspensão de despedimento.
O despedimento por inadaptação fica facilitado em termos que podem por em causa a segurança no emprego, se não houver cuidado na concretização das propostas formuladas.
Inúmeras são as questões que suscitam as propostas relativas ao direito colectivo do trabalho e as considerações relativas à representação dos trabalhadores, às reuniões de trabalhadores no local de trabalho e à questão da representatividade associativa, que será cada vez mais relevante no futuro.
Ao avaliar o conjunto das propostas do LBRL e a pretensão de criar um direito de trabalho mais flexível, que só terá sentido, se for um direito efectivamente aplicado e não meramente virtual como acontece hoje em grandes áreas de actividade, temos que ter em conta os constrangimentos concretos da realidade social.
A Comissão Nacional Justiça e Paz, descreveu-a no seu contributo para o LBRL, de forma objectiva: «No caso português, existem fortes condicionalismos a uma aplicação do conceito de flexisegurança, já que o Estado e o sistema de segurança social continuam a enfrentar graves restrições financeiras, a actividade económica não tem apresentado potencial para um ritmo crescente e suficiente de criação de emprego, os níveis de qualificação escolar e profissional de grande parte dos trabalhadores não lhes conferem uma empregabilidade facilitadora da mobilidade profissional, o contexto cultural é favorável a comportamentos arbitrários no exercício dos poderes hierárquicos e patronais”.
Estas são algumas notas breves suscitadas por uma primeira leitura do LBRL.
É inequívoco que se torna necessário o fortalecimento do movimento sindical, das centrais e dos sindicatos para fazer face aos novos desafios, o que passa nomeadamente pela concentração de meios e recursos.
O recente anúncio da criação da FEBASE, Federação do Sector Financeiro, que engloba os principais sindicatos da Banca e dos Seguros, é um passo na construção do movimento sindical do futuro que terá de ser cada vez mais forte e representativo para poder defender com eficácia os trabalhadores.

terça-feira, dezembro 25, 2007

A ESPERANÇA CRISTÃ SEGUNDO BENTO XVI

A encíclica “Salvos Na Esperança” de Bento XVI foi recebida com muita discrição, sem grandes comentários na comunicação social. Penso, contudo, que é um documento importante, de grande densidade espiritual.
Tem sido referido criticamente que esta encíclica se dirige apenas aos católicos e não também a todos os homens de boa vontade, como aconteceu com outras no passado, ou que não cita, por exemplo, a Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II. Tudo isso é verdade, mas não podemos deixar de estar atentos ao que tem de profundamente inovador.
Tem-se sido dito que a encíclica é muito europeia, mas não o é mais do que anteriores documentos e percebe-se que Bento XVI, tem a preocupação de alargar os seus horizontes. É significativo da importância que dá à Africa e à Ásia, o destaque dado ao exemplo de uma santa sudanesa, Josefina Bakhita (nascida por volta de 1869), ao mártir vietnamita Paulo Le-Bao-Thin (falecido em 1987) ou o «inesquecível» cardeal Nguyen Van Thun que nos deixou nas suas palavras “um livrinho precioso: «Orações de Esperança»”. É uma encíclica europeia na medida em que tem presente a narrativa da modernidade e os desafios que a Revolução Francesa e a Revolução Russa colocaram à existência cristã, mas, se é certo que há mais mundos para lá destes processos históricos, não podemos ignorar os impactos universais que daí decorreram. Engels, Marx ou Lenine, que refere, tiveram e têm influência nos processos políticos em vários continentes.
É interessante verificar que partindo do judaísmo antigo, de São Paulo e de Padres da Igreja como Santo Agostinho, São Gregório Nazianzeno, São Máximo o Confessor, São Tomás de Aquino - embora apenas para o contrapor a Lutero sobre a exegese da Carta Aos Hebreus-, cite, entre outros, Francis Bacon, Henri de Lubac, Emmanuel Kant, “Os Irmãos Karamazov” de Dostoievski, Platão, os marxistas da Escola de Frankfurt, Teodoro W. Adorno e Max Horkheimer, muitas vezes o Catecismo da Igreja Católica, mas não os ilustres predecessores, como é usual.
Também não é habitual a citação, mesmo crítica, de pensadores laicos como se faz nesta encíclica. Este facto não deve ser ignorado nem minimizado e é justo interpretá-lo como uma vontade de dialogar e argumentar, que deve ser a atitude da Igreja Católica nas modernas sociedades democráticas, no quadro do que pretende ser a necessidade de “uma autocrítica da idade moderna feita em diálogo com o cristianismo e a sua concepção de esperança”.
Um exercício interessante, mas para o qual não tenho competência seria ver em que medida algumas das reflexões, designadamente sobre o sofrimento, se aproximam, afastam ou ficam aquém de outras, como as do notável teólogo alemão J.Baptist Metz sobre o sofrimento.
A encíclica não pretende ser meramente “informativa”, mas também “performativa”, como ela própria refere, e nesta perspectiva há aspectos, que merecem uma leitura atenta e meditada. Refiro-me às considerações sobre esperança e salvação, que atravessam todo o documento, particularmente, sobre os “lugares” de aprendizagem e de exercício da esperança, que incluem: a oração como escola da esperança; agir e sofrer como lugares de aprendizagem da esperança; o Juízo como lugar de aprendizagem e de exercício da esperança.
É também de sublinhar a preocupação que tem em afirmar que a salvação nunca é apenas uma questão pessoal, que “as nossas vidas estão em profunda comunhão entre si”, que “continuamente entra na minha existência a vida dos outros: naquilo que penso, digo, faço e realizo”.
Bento XVI preocupa-se em afastar representações inadequadas sobre a “vida eterna” para nos iniciar na esperança cristã, que reconhece ser “uma expressão insuficiente, que cria confusão”.
A questão que se coloca e para a qual ainda não há resposta possível, é a de saber em que medida esta encíclica irá ser performativa, isto é, para a citar, “uma comunicação que gera factos e muda a vida”.
Apenas posso acrescentar que, no que me diz respeito, sinto que me desafia a lê-la e meditá-la muitas vezes, porque está centrada no essencial da vida.

domingo, dezembro 16, 2007

A PRESIDÊNCIA PORTUGUESA DA UNIÃO EUROPEIA E O FUTURO

Ao terminar a Presidência Portuguesa da União Europeia, é com orgulho que constatamos que contribuiu efectivamente para o seu fortalecimento e, que a assinatura do Tratado de Lisboa é um marco positivo no processo de construção europeia. É justo acrescentar que Portugal também ficou mais forte.
O sucesso da Presidência não é apenas mérito de José Sócrates, é fruto de equipas vastas e em grande parte invisíveis, que ele soube coordenar, mas é justo elogiar o contributo dado pela equipa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o Ministro Luís Amado, os Secretários de Estado, João Gomes Cravinho e Manuel Lobo Antunes. O sucesso é também resultado do empenhamento e da competência demonstrada pela diplomacia portuguesa.
O que gostaria de sublinhar é que esta Presidência soube articular sabiamente a agenda europeia com a agenda portuguesa. A Cimeira com o Brasil, a aprovação da parceria especial entre Cabo Verde e a União Europeia, A Cimeira Europa-África correspondem a opções estratégicas da União Europeia, mas que se entrelaçam de forma muito positiva com prioridades da política externa portuguesa. Conjugar os interesses nacionais com os interesses europeus é um grande desafio para o futuro, num momento em que a União Europeia, depois do Tratado de Lisboa pretende ter, enquanto tal, um papel mais articulado a nível internacional. Temos que construir uma doutrina sobre esta matéria com realismo, mas sem deixar de considerar que Portugal, pela sua história e pelos laços que mantêm com o Mundo de Língua Portuguesa deverá ter uma política externa que os projecte no futuro e que não se resigne à sua demografia, criando também uma articulação mais dinâmica com as comunidades portuguesas na Europa e no Mundo. Só quem tiver este desígnio estratégico para Portugal, deve merecer o apoio dos cidadãos.
Não é portanto justo dizer que depois desta Presidência, José Sócrates está de regresso a Portugal sem fuga possível.
Agora o que é verdade é que temos tarefas muito exigentes para aproveitar o justificado impulso que esta Presidência trouxe para a “marca Portugal”. Foi oportuno lançar a campanha de promoção da “marca Portugal” no fim desta Presidência.
Não podemos ignorar que, como refere Alejandro Portes: «O novo espaço transnacional, marcado pela presença das cidades globais, é criado por fluxos sustentados de capital, tecnologia, informação … e pessoas» (vd, Estudos sobre as Migrações Contemporâneas; Fim de Século, Lisboa).
Temos muito por fazer em matéria de educação e formação, na nossa inserção mais consistente nas redes transnacionais de ciência, tecnologia e comunicações. Temos de ter, pelo menos uma cidade, Lisboa, como uma cidade global, que exerça as suas funções de capital no quadro nacional, mas que seja também um nódulo da economia-mundo globalizada, de que depende, em grande medida, o futuro de Portugal.
Tudo isto só é possível fazer com as pessoas, os portugueses e os imigrantes, que nos acrescentam, e são essenciais para Portugal vencer os desafios. É imprescindível uma Administração Pública que se sinta respeitada e seja motivada para se superar ao serviço de metas mais ambiciosas para o desenvolvimento do País.
Não devemos por isso perdermo-nos em polémicas estéreis, mas o Governo tem de demonstrar que depois de ter mostrado determinação, é capaz de continuar a decidir questões estratégias para o futuro em matéria de comunicações, como o TGV e o novo Aeroporto, mas, ao mesmo tempo, não ser autista face às críticas dos trabalhadores e sindicatos e desconfiar dos iluminados, que por pretenderem ter toda a razão, são incapazes de se sujeitar ao contraditório.
É fundamental para o futuro do País, que o Governo tenha êxito, o que só acontecerá de forma sustentável, se não for autista, se for forte face aos grandes interesses privados quando não convergem com o interesse nacional, e capaz de ser sensível às críticas justas dos trabalhadores.

domingo, dezembro 09, 2007

SOTTOMAYOR CARDIA - LIBERDADE SEM DOGMA


Vai ser apresentado publicamente no próximo dia 17, na Fundação Mário Soares, o livro “Liberdade sem Dogma” sobre Sottomayor Cardia, organizado por Carlos Leone e Manuela Rêgo.
Mário Sottomayor Cardia foi um cidadão, um intelectual e um político socialista que contribuiu decisivamente para que vivamos hoje numa democracia política e num Estado de Direito. A consolidação da democracia não foi o resultado de um confronto entre alguns líderes, foi um processo social e político em que participaram milhares e milhares de cidadãos, mas no qual se destacaram em diversos momentos, vários actores políticos.
Referimo-nos aqui à acção Mário Sottomayor Cardia na altura da sua morte, mas não queremos deixar de assinalar o interessante livro coordenado por Carlos Leone e Manuela Rêgo, que deveria ter sequência relativamente a outras figuras intelectuais e políticas que contribuíram para a concretização das promessas democratizadoras do 25 de Abril.
O livro é composto por documentos e estudos, embora essa divisão possa ser questionada. É interessante referir que a homenagem a Cardia começou na blogosfera, como testemunha Carlos Leone dando conta da recolha a que procedeu com Isabel Goulão, conhecida na blogosfera por Miss Pearls.
Contribuíram com testemunhos: Mário Cláudio, José Vargas Santos Pessegueiro, Gastão Cruz, Vasco Vieira de Almeida, António Reis, L. A. Costa Dias, Jorge Miranda, Maria Emília Melo, Mário Soares e José Medeiros Ferreira. Os estudos incluídos são das autoria de: Daniel Melo, Miguel Real, Manuel Filipe Canaveira, José Castelo, João Miguel Almeida; José Leitão e António Braz Teixeira: Carlos Leone assina uma cuidada introdução e Manuela Rêgo um exaustivo levantamento da bibliografia de Mário Sottomayor Cardia, instrumento de trabalho imprescindível para prosseguir o estudo da sua vida e obra.
Mário Sottomayor Cardia teve muitos momentos marcantes na sua actuação política, designadamente: na elaboração da primeira Declaração de Princípios e no primeiro Programa do Partido Socialista; na afirmação da autonomia estratégica do Partido Socialista; nas suas intervenções na Assembleia Constituinte, com destaque para a suas intervenções críticas contra o Documento-Guia da Aliança Povo-M.F.A., ou o I Pacto M.F.A.- Partidos (vd. Medeiros Ferreira); a sua responsabilidade na consagração da liberdade de ensino no n.2 do art. 4 da Constituição da República (vd. Jorge Miranda). Este facto terá influenciado, segundo me confidenciou, a sua escolha para Ministro da Educação, funções que viria a exercer com lucidez e determinação num período difícil. É também muito importante o seu contributo teórico para o Partido Socialista, com livros como: “Por Uma Democracia Anticapitalista (1973) ou “Socialismo sem Dogma” (1982).
Tomar posição é sempre correr o risco de entrar em divergência com os próprios companheiros de luta. Discordei muitas vezes de Mário Sottomayor Cardia relativamente, por exemplo, a candidatura presidencial de Jorge Sampaio, ou o Acordo Ortográfico, mas senti, como refere Jorge Miranda no seu texto e me foi testemunhado então por Eduardo Lourenço, que o Partido Socialista deveria ter estado mais presente aquando da sua morte.
Neste importante e interessante livro faltam vozes de outras áreas e outras gerações do Partido Socialista que deveriam estar presentes. Percebe-se da introdução, que houve colaborações que se não vieram a concretizar.
De sublinhar a importância de que se reveste a colaboração de jovens investigadores que não tendo sido seus companheiros de luta manifestam empenho em estudar o seu pensamento e acção, como Cristina Lisboa, Daniel Melo e João Miguel Almeida.
Este livro deixa muitas pistas abertas para futuras investigações como a que Manuela Rêgo não teve possibilidade de concretizar, sobre o que se escreveu sobre Sottomayor Cardia, enquanto Ministro da Educação.

domingo, dezembro 02, 2007

FINALMENTE O ACORDO ORTOGRÁFICO


É uma boa notícia saber que se começam finalmente a criar condições para que o Acordo Ortográfico venha a ser aplicado. É caso para saudarmos o facto de após tanta demissão e falta de visão estratégica, existirem estadistas capazes de levar para a frente um processo essencial para assegurar que a Língua Portuguesa seja, pelo menos, durante este século uma língua com projecção mundial, falada por milhões de pessoas em vários continentes.
Esta é uma questão que irá ser discutida nos próximos tempos e deixo já clara a minha posição. Este blogue que nunca escondeu o seu compromisso com a Língua Portuguesa e com o Mundo de Língua Portuguesa apoia, por isso mesmo, com determinação a aplicação do Acordo Ortográfico.
A Língua Portuguesa é hoje uma Língua falada por milhões de pessoas em vários continentes, é a língua de Portugal e do Brasil, a língua oficial de Cabo Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, uma das duas Línguas de Timor-Leste, a par do tétum.
A Língua Portuguesa é também a única língua do mundo ocidental com mais de uma ortografia. Este facto enfraquece a expansão da Língua Portuguesa no Mundo, dificulta a sua difusão através das novas tecnologias de informação e a tradução automática de qualidade de e para outras línguas.
A diversidade dos mundos de que é feito o Mundo da Língua Portuguesa terá na existência de regras ortográficas comuns um factor de enriquecimento na comunicação e no diálogo cultural. Se elas não vierem a ser aplicadas iremos assistir a um processo de fragmentação, que comprometerá dramaticamente o futuro da Língua Portuguesa.
Relativamente aos que de boa fé encaram com algum desconforto este processo quero desde já recordar o seguinte. A ortografia da Língua Portuguesa tem mudado profundamente. Não é necessário recuarmos às canções de amigo medievais, bastará ver como escrevia Fernando Pessoa e como nós escrevemos hoje. Libertámo-nos no século XX de utilizar duplas consoantes, ganharemos alguma eficácia no ensino da Língua Portuguesa no século XXI se nos libertarmos, por exemplo, das consoantes mudas.
O processo de simplificação ortográfica teve início por iniciativa unilateral de Portugal durante a primeira República Portuguesa, só depois o Brasil iniciou o processo de simplificação ortográfica. Estes dois movimentos tornaram necessária a celebração de um Acordo Ortográfico, que tem que abranger hoje todos os Estados de Língua Portuguesa.
Alguns manifestam surpresa por haver normas legais nesta matéria, mas a questão tem uma dupla resposta. Normas legais em matéria de língua existem noutros países como a França, por exemplo. Por outro lado, língua e política estiveram sempre ligadas. Sem as leis do Marquês de Pombal, a língua de Camões não se teria tornado uma língua de cultura com prejuízo do latim em Portugal. No Brasil foram também as leis do Marquês que impuseram a Língua Portuguesa como única língua, permitindo manter a unidade do Brasil. Não é por acaso que o Uruguai e o Paraguai para se autonomizarem do Brasil adoptaram o castelhano. Talvez por isso mesmo Getúlio Vargas combateu a utilização do italiano e do alemão no intuito de assegurar a unidade do Brasil.
Pretender fazer passar o Acordo Ortográfico como uma imposição imperial brasileira a Portugal, como faz Vasco Graça Moura, quando o acordo foi negociado por gramáticos e linguistas portugueses da maior qualidade e empenho no futuro da Língua Portuguesa, seria do domínio do ridículo, se não fosse mais uma manifestação da incapacidade de uma parte da inteligência portuguesa, em definir uma agenda que permita a Portugal ter um lugar no Mundo correspondente à sua história e não apenas à sua demografia.
Quero por isso felicitar o editorial do «Expresso», de 1 de Dezembro, intitulado precisamente, «Viva o Acordo Ortográfico». É bom que um grande meio de comunicação de massas assuma desta forma as suas responsabilidades no que se refere ao futuro da Língua Portuguesa.
Esperamos que a Assembleia da República e o Governo saibam também assumir as suas responsabilidades.

domingo, novembro 25, 2007

POLÍCIA E CIDADANIA

«Livre me considero e livre me prezo», afirmou António Clemente Lima, Inspector-Geral da Administração Interna, numa corajosa entrevista, publicada em 24 de Novembro de 2007 no «Expresso», em que abordou o estado das polícias, PSP e GNR.
É uma entrevista ponderada dada por um cidadão, que é um respeitado Juiz Desembargador, que ocupa neste momento o cargo de Inspector-Geral da Administração Interna, na qual aborda, com clareza, alguns dos problemas que afectam estas polícias. Gostaria de vos convidar a lerem na íntegra esta entrevista.
Todos sabemos que estas polícias são compostas por cidadãos, que na generalidade dos casos, procuram cumprir o melhor possível as funções que lhe estão confiadas, mas isso não nos pode levar a escamotear comportamentos incorrectos, que têm de ser corrigidos. O facto de elogiarmos os polícias e os guardas que estão em Timor-Leste desempenhando exemplarmente as suas funções e as intervenções de muitos no combate a criminalidade em geral, e aos crimes racistas em particular com tenho referido, não nos pode fazer ignorar os problemas existentes.
Clemente Lima parte da formação, designadamente em matéria de direitos fundamentais, e das condições de trabalho. Não podem ser ignoradas as suas opiniões que assentam num conhecimento profundo da situação existente nestas polícias. Quando refere os aspectos negativos que advêm para os oficiais da GNR da formação na Academia Militar, o que leva a uma «sobrevalorização dos conceitos militares relativamente aos policiais» ou quando refere o desconhecimento de agentes recém-formados da PSP do que seja a IGAI, que confundiam com a ASAE, coloca questões relativas ao tipo de formação ministrada que não podem ser ignoradas.
Clemente Lima tem um diagnóstico preciso da situação e da necessidade de agir. Não é por acaso que afirmou: «Vamos dar prioridade às condições de trabalho. Ninguém consegue em condições execráveis uma relação fluida com o cidadão».
As consequências das deficiências de formação em matéria de direitos humanos têm consequências negativas no dia a dia da actuação policial, em perseguições policiais por infracções de trânsito que acabam, por vezes, em mortes. Afirma: «São casos isolados. Mas a repetição de casos isolados, preocupa-me».
Não se fica por constatações, retira conclusões e orientações. Considera designadamente, «a necessidade de um investimento urgente: na adopção, pelas forças de segurança, de procedimentos uniformes em matéria de recursos a meios coercivos; na análise, no interior de cada uma das forças de segurança, do impacto (também económico) das perseguições policiais; na formação inicial e contínua, neste particular, dos agentes das forças de segurança».
Muitas outras questões foram abordadas e muitas outras igualmente relevantes ficaram por referir.
Uma entrevista não é suficiente para retratar as preocupações que animam o Inspector-Geral da Administração Interna. De qualquer forma, esta entrevista fica como um marco em matéria de articulação de polícia com cidadania. Não esqueçamos que compete à IGAI, designadamente «a defesa dos legítimos interesse dos cidadãos, a salvaguarda do interesse público, e a reintegração da legalidade violada» (art.3 da DL 227/95, de 11 de Setembro). É para isso que a IGAI existe e esta foi também sempre uma preocupação do primeiro Inspector-Geral da Administração Interna, o ilustre Magistrado do Ministério Público, António Henriques Rodrigues Maximiano.
Uma instituição como a IGAI tem que ter uma comunicação directa, transparente e completa e actualizada com os cidadãos. Permito-me, por isso recomendar que valorize este sítio como canal de comunicação e que o torne mais dinâmico, de forma a alimentar uma relação interactiva com os cidadãos. Só tornando clara para a generalidade dos cidadãos a importância da existência de uma instituição como a IGAI é que esta será dotada dos meios necessários para a sua actuação e que teremos a garantia de ter como Inspector-Geral, pessoas competentes e livres, capazes de velar pelos direitos dos cidadãos e a dignificação das polícias, como é o caso do Juiz Desembargador, António Manuel Clemente Lima.

domingo, novembro 18, 2007

TIMOR-LESTE - RAMOS-HORTA EM LISBOA

A visita a Lisboa do Presidente da República de Timor-Leste, José Ramos-Horta, foi um acontecimento que veio recordar a necessidade de seguir com atenção a evolução política em Timor-Leste.
Ramos-Horta deve ter sentido que depois da mobilização sem paralelo que se verificou em Portugal no passado recente, houve um certo distanciamento de uma parte da opinião pública nos últimos anos. A instabilidade política, a divisão entre dirigentes políticos que tinham estado unidos na luta pela independência, a que na altura nos referimos aqui, provocou algum arrefecimento emocional da opinião pública portuguesa.
No seu improviso na Câmara Municipal de Lisboa depois de ter evocado um tocante gesto de solidariedade recebido no passado, quando uma portuguesa pobre de Lourosa lhe deu mil escudos para apoiar a luta do povo timorense, que manifestamente lhe faziam falta, que hesitou em aceitar, resolveu responder a esse sentimento.
Referiu que, apesar da responsabilidade pelos confrontos ocorridos pertencer aos timorenses, e, particularmente os que eram titulares dos órgãos de soberania, era necessário compreender o contexto em que se verificaram. Considerou que o maior erro foi não ter havido um maior período de transição sob a égide das Nações Unidas e recordou a instabilidade política que também se verificou em Portugal após o 25 de Abril para nos ajudar a fazer compreender o que se passou em Timor-Leste. Falou desta forma para os amigos que se emocionam profundamente, mas que também se decepcionam com facilidade.
Portugal é hoje o maior parceiro de cooperação com Timor-Leste, que é o maior destinatário da nossa ajuda pública ao desenvolvimento. Os sectores prioritários de cooperação são o ensino da língua portuguesa, a educação, a capacitação institucional, particularmente na área da justiça.
Das intervenções públicas de Ramos-Horta ressaltam algumas questões que têm de ter resposta adequada: a necessidade de prosseguir o apoio ao enraizamento do português a par do tétum como língua oficial; a necessidade de manter a presença de forças internacionais, designadamente, da GNR e da PSP durante alguns anos para assegurar a estabilidade.
Ramos-Horta, embora sublinhando os progressos no ensino da língua portuguesa, dizendo que o “o desenvolvimento nota-se” (Público, 16-11-2007), insistiu que o uso da língua portuguesa é um esforço de longo prazo, que só deverá estar completo dentro de duas gerações.
Cavaco Silva sentiu a necessidade que temos de apoiar ainda mais o enraizamento do português, bem como a impossibilidade de o fazermos sozinhos e apelou ao empenhamento nesse processo de outros países lusófonos, designadamente, Cabo Verde. Cavaco Silva acrescentou que: «Todos os países da CPLP devem estar envolvidos na consolidação da língua portuguesa ao lado do tétum em Timor-Leste».
Recordemos que até agora os custos têm sido suportados por Portugal e também pelo Brasil. Pela primeira vez o governo timorense inscreveu no orçamento para o próximo ano verbas para o efeito.
Esta visita foi também uma oportunidade para recordarmos os cerca de duzentos professores portugueses, bem com a cerca de duas dezenas de profissionais da área da justiça, que «tem desempenhado as suas funções com dedicação, sacrifício pessoal e grande profissionalismo», como recordou Cavaco Silva.
As dificuldades que Timor-Leste enfrenta no presente, não nos deve fazer esquecer que é um país com grandes possibilidades de desenvolvimento, pelo facto da natureza o ter dotado de petróleo e gás natural, e que tem dificuldade em canalizar os recursos obtidos dos acordos celebrados para a sua exploração para o desenvolvimento humano dos timorenses.
Esta é uma realidade que não pode ser ignorada no futuro do relacionamento e da cooperação entre Portugal e Timor-Leste, que temos de aprofundar e alargar através de iniciativas públicas e privadas, com seriedade e eficácia.

domingo, novembro 11, 2007

IGREJA CATÓLICA - TEMPO PARA MUDAR

Estamos num tempo para mudar a Igreja Católica em Portugal. Os dados estatísticos não enganam: há menos sacerdotes, menos seminaristas, menos baptizados, menos católicos em Portugal. Existe, contudo, um número muito significativo do que se designa por católicos não-praticantes o que aconselha uma leitura mais aprofundada destes dados.
A recente visita ad limina dos Bispos portugueses ao Papa Bento XVI, para uma análise da situação da Igreja em Portugal, trouxe esta realidade para a primeira página dos jornais. Tendo esta crise sido assumida iniciou-se um tempo para mudar no qual todos os que mantemos algum tipo de laço com a Igreja Católica nos sentimos chamados a participar.
Há um défice de participação dos leigos na Igreja e na sociedade. Não é por acaso que D. José Policarpo, assumindo a crise existente defende uma instituição “menos clerical”. O que está em causa não é saber se a Igreja Católica tem mais ou menos poder é saber de que forma deverá anunciar com mais eficácia Jesus Cristo e a sua mensagem como uma verdadeira Boa Nova de salvação para as angústias e esperanças de todos os que vivem em Portugal.
Se não há dúvida que este é um tempo para mudar, é importante saber qual o horizonte da mudança e essa terá de ser na linha de uma maior vivência das opções do Concílio Vaticano II. Não se trata de ficarmos a olhar para trás, mas de encontrar novas respostas a partir das orientações do Concílio Vaticano II. Algumas tomadas de posição recentes, como a D. José Policarpo, de 14 de Setembro passado, a propósito da liturgia, vão nesta linha, sublinhando a forma como a Reforma Litúrgica «modelou a nossa forma de ser cristão e imprimiu um rosto às comunidades cristãs que aprenderam a viver a liturgia não apenas como manifestação de fé pessoal, mas como expressão viva de um Povo que se reconhece como comunidade enquanto celebra a Sagrada Liturgia».
O caminho tem de ser partir dos problemas concretos das mulheres e dos homens, procurando ajudá-los a descobrir as respostas para as suas inquietações e esperanças mais profundas, à luz do memorial da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. É esta a missão e a razão de ser da Igreja.
O facto de se estimarem em 9,35 milhões o número de católicos para uma população de 10,4 milhões de pessoas, mas menos de 2 milhões de católicos serem praticantes, deve levar a muitas reflexões, designadamente, sobre a eficácia dos ritos de iniciação como foi sugerido pelo Papa, cuja intervenção na íntegra pode ler aqui, mas é também significativo do eco do Evangelho na sociedade portuguesa. É um dado que não pode ser ignorado por ninguém e que vai ter um peso significativo na realidade, social e cultural portuguesa, tanto maior quanto a Igreja souber acolher esses cristãos, que se continuam a sentir ligados por uma fé comum, que têm muito a aprender com os católicos praticantes, que também podem aprender muito com eles.
Aliás, as expressões praticantes e não praticantes recobrem situações humanas muito diversificadas, mas as realidades espirituais são apenas de forma superficial traduzidas por estas categorias. Há que começar por não apagar a chama que fumega, para procurar depois vivificá-la.
A Igreja tem também de continuar a procurar uma inserção adequada na sociedade, democrática, laica e plural, num processo de profunda mutação cultural, como é a portuguesa.
A forma como forem geridas as negociações sobre a regulamentação da Concordata e a forma como a Igreja participar nas comemorações do centenário da implantação da República terá relevância no relacionamento da Igreja com a sociedade e o Estado.
No que se refere à regulamentação da Concordata é exigível rigor e boa fé de todos. O recente envolvimento pessoal do Primeiro-Ministro, José Sócrates é positivo por significar que da parte do Estado, a negociação será conduzida de forma responsável. O mesmo terá de acontecer da parte da Igreja. Nesta matéria, como na das comemorações do centenário da República há que ser objectivo e rigoroso, não permitindo aproveitamentos ou manipulações políticas por parte de quem quer que seja.
Há dois erros que não devem ser cometidos: fazer do afrontamento da Igreja com o Estado e as suas opções uma pretensa forma de afirmação da Igreja, como tem acontecido em Espanha, e que tem contribuído para afastar a Igreja da sociedade espanhola; sobrevalorizar ou deixar-se condicionar pela acção de pequenos grupos militantemente anti-religiosos.
Torna-se fundamental, para além do diálogo inter-religioso que deve prosseguir de forma empenhada, promover um diálogo plural com os não-crentes, à semelhança do que foi desenvolvido entre D. José Policarpo e Eduardo Prado Coelho. A grande maioria dos não-crentes, como a grande maioria dos crentes procura a verdade e o sentido para a vida, respeita o outro, e abomina cruzadas, sejam elas em nome da religião ou da anti-religião.
Estamos num limiar de um tempo novo, que comporta riscos e oportunidades novas, é tempo de mudar na Igreja Católica em Portugal.

domingo, novembro 04, 2007

A II CIMEIRA UE-ÁFRICA-UM NOVO RELACIONAMENTO A PARTIR DE 2008

Na semana passada foram dados passos decisivos para o sucesso da II cimeira UE-África. Na reunião realizada no Gana com a participação do Ministro Luís Amado, ficaram delineados os documentos relativos à Parceria Estratégica e ao Plano de Acção, segundo “O Público” de 3 de Novembro de 2007, que afirma ter tido acesso ao esboço desses documentos.
O sucesso desta reunião tem o significado de que está a decorrer bem a preparação da Cimeira, já que o mais difícil do trabalho de negociação é feito antes da sua realização.
As duas organizações UE e União Africana terão, segundo a mesma fonte definido como acções prioritárias: «Paz e Segurança, Governação Democrática e Direitos Humanos, Comércio e Integração Regional, a criação de condições para os países africanos atingirem os objectivos relativos ao acesso à saúde e educação, definidos pela ONU como Objectivos do Milénio, o Ambiente, a Energia, ou a Imigração entre outras».
Num mundo cada vez mais perigoso, é muito positivo que a UE e a União Africana se proponham juntas «promover e apoiar um sistema de multilateralismo efectivo e instituições multilaterais legítimas e fortes». Este poderá ser um contributo muito importante para reduzir e prevenir conflitos.
Existe uma vontade de passar das palavras aos actos e esta Cimeira irá contribuir positivamente não apenas para um melhor relacionamento entre os dois continentes, ligados desde sempre, mas que ensaiam, pela primeira vez na história, um relacionamento assente na igualdade e na definição de objectivos comuns livremente assumidos.
Esta Cimeira vai ocorrer num momento em que, além dos Estados Unidos da América, todas as grandes potências emergentes China, Brasil e Índia mostram um interesse acrescido por uma maior presença em África. Seria totalmente insensato a UE fazer tábua rasa dos laços históricos, culturais, económicos e humanos que unem os dois continentes e não dar um salto qualitativo na relação entre os dois continentes.
Já referi aqui as razões pelas quais considero fundamental a realização desta Cimeira e a construção de uma Parceria Estratégica UE-África. É muito positivo que a Presidência portuguesa tenha persistido, com determinação, na preparação cuidadosa desta Cimeira, apesar de alguma opinião publicada, que tem criticado a sua realização, tomando como pretexto a presença de Robert Mugabe.
Nesta crítica, confundem-se duas posições: a dos que aproveitam essa eventual presença para atacar a realização de uma Cimeira que no seu eurocentrismo arcaico e pré-globalização consideram dispensável; a daqueles que estão sinceramente indignados com a sistemática violação dos direitos humanos por parte de Robert Mugabe.
Não há dúvidas que as críticas a Robert Mugabe são justificadas, mas o que está em causa não é a legitimação do seu governo, mas sim o compromisso dos dois continentes de promoverem os direitos humanos e a governação democrática. Depois de Mugabe ser levado a aprovar os textos da Cimeira, a oposição a Robert Mugabe passará a ter uma legitimação acrescida para o acusar de não respeitar os direitos humanos, nem as regras da governação democrática, nem sequer os compromissos assumidos perante a UE e a União Africana.
Mugabe não é, aliás, o único dirigente que poderá ser acusado de violar os direitos humanos e de não assegurar uma governação democrática, que irá estar presente, mas o mesmo argumento vale para a presença dos restantes.
Falemos claro, o mundo está cheio de graves violações aos direitos humanos, mas não creio que ao contrário do que pensa a nova direita americana, a solução seja esperar que a força das armas e as invasões, como a do Iraque, criem novas democracias. Tem que se dar oportunidade à diplomacia para que possa contribuir para o progresso do respeito pelos direitos humanos e das regras de governação democrática, sem deixar de apoiar todos os que se batem pela democracia e pelos direitos humanos.
À medida que se aproxima a data da realização da Cimeira, para muitos europeus e africanos, cresce a esperança de que seja possível iniciar um novo relacionamento a partir de 2008.

domingo, outubro 28, 2007

PARCERIA ESPECIAL ENTRE A UNIÃO EUROPEIA E CABO VERDE

Cabo Verde conseguiu um grande sucesso diplomático com a aprovação pela Comissão Europeia de uma parceria especial, sem precedentes, com a União Europeia.
Defendi aqui o processo de aproximação entre Cabo Verde e a União Europeia e não podia deixar de manifestar a minha satisfação por este passo fundamental e de me congratular por ter sido concretizado durante a Presidência Portuguesa da União Europeia.
A comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento sobre o futuro das relações entre a União Europeia e a República de Cabo Verde, datada de 24 de Outubro de 2007, considera que «a parceria especial destina-se a reforçar a concertação e a convergência das políticas entre ambas as partes, permitindo acrescentar um quadro de interesses comuns à relação tradicional dador-beneficiário».
A União Europeia sublinha a aproximação crescente que se tem verificado com as suas regiões ultraperiféricas no Atlântico Norte. Como refere o documento: «Cabo Verde, constitui juntamente com as ilhas europeias dos Açores, Madeira e Canárias, o conjunto designado Macaronésia, onde desde sempre se foram tecendo ligações históricas, culturais, linguísticas e de complementaridade que caracterizam ainda hoje as suas relações e a sua cooperação».
Este acordo ocorre num momento muito especial para Cabo Verde, quando passa a ser considerado um país mediamente desenvolvido, o que é uma comprovação do sucesso das políticas de desenvolvimento seguidas, mas ao mesmo tempo fica privado de ajudas internacionais, que a anterior situação justificava.
O plano de acção para a parceria especial articula-se em torno de seis pilares: boa governação; segurança/estabilidade, integração regional, convergência técnica e normativa, sociedade do conhecimento, luta contra a pobreza e desenvolvimento. Esta parceria especial inclui o financiamento do plano de acção, que irá permitir avançar nos diferentes pilares.
O documento que estabelece a parceria especial vai ser enviado ao Parlamento Europeu para ratificação e será, em princípio, definitivamente aprovado na próxima reunião do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas, que terá lugar nos dias 19 e 20 de Novembro de 2007.
Esta comunicação da União Europeia é um novo começo, que poderá ir mais longe do que muitos hoje imaginam ou ousam esperar, se nos empenharmos em explorar as potencialidades desta parceria, com rigor e competência política e diplomática.
Como afirmou recentemente à BBC para África, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, João Gomes Cravinho, Cabo Verde faz parte da fronteira externa da União Europeia. Se assim é, há que ir retirando as consequências práticas do reconhecimento desse facto.
Como se refere na comunicação: «A parceria especial é um processo de que o plano de acção constitui o quadro e o instrumento que permite a sua concretização. O plano de acção terá uma duração indeterminada e será revisto periodicamente segundo modalidades estabelecidas de comum acordo».
Está em curso uma dinâmica em que Portugal deverá desempenhar um papel insubstituível pelos nós e os laços existentes com Cabo Verde.

domingo, outubro 21, 2007

LISBOA TERRA DE HARMONIA

O poeta Carlos de Oliveira no belíssimo poema “Canto” do seu livro «Terra de harmonia» escreveu “Cantar é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras/fique embora mais breve a nossa vida».
Este, como muitos outros poemas, de Carlos de Oliveira, tem manifestas ressonâncias bíblicas.
Tenho recordado este poema, ao reflectir sobre a profanação no passado dia 25 de Setembro de vinte túmulos no Cemitério Judaico de Lisboa, conforme pode ver aqui.
Este acto foi um acto de barbárie que irá, estou confiante, ter a resposta adequada em termos penais, já que foi possível identificar os responsáveis.
Para além de diversas manifestações de repúdio, designadamente, por parte da Assembleia da República, realizou-se no passado dia 7 de Outubro de 2007, uma cerimónia religiosa, na qual para além de membros da Comunidade Israelita, participaram membros de outras comunidades religiosas, de representantes de partidos representados na Assembleia da República, cidadãos que se quiseram associar, o ACIDI, os Ministros da Administração Interna e da Justiça, o Embaixador de Israel.
Todos foram unânimes em condenar com vigor esta profanação, que como afirmara desde o início a Comunidade Israelita de Lisboa «constituiu um crime contra a Comunidade Judaica, bem como uma ofensa à sociedade civil Portuguesa; à democracia e ao Estado de Direito».
Foi uma cerimónia de grande dignidade, em que o Estado português representado pelos ministros, reafirmaram a confiança no Estado de Direito e na responsabilização dos responsáveis. O Ministro da Justiça, Alberto Costa, deixou, contudo, a advertência: «Nunca poderemos dar os sinais da barbárie como definitivamente extintos. Lutar contra ela é um trabalho infindável que o céu cometeu à condição humana».
Assim sendo, creio que deveríamos fazer mais alguma coisa para criar cidades futuras que sejam terra de harmonia.
O Padre Peter Stilwell, em nome da Igreja Católica em Lisboa, afirmou, nomeadamente: «O respeito pelos antepassados, nossos e dos outros; o cuidado com que rodeamos as suas sepulturas, é um traço que distingue a emergência da humanidade de entre os demais seres vivos sobre a terra. A profanação de um cemitério atesta, portanto da degradação humana de quem a pratica e da ideologia que lhe dá cobertura». E acrescentou: «Mas, no caso, a questão não é tão simples. O gesto evoca um demónio que dorme no coração da Europa, e que nem o horror da Shoa saciou. A profanação deste lugar de repouso foi um acto de culto que lhe foi prestado».
Peter Silwell considerou que era necessário ir mais longe no repúdio deste acto, dizendo: «Seria bom, neste contexto, retomar a proposta da Comunidade Israelita de Lisboa, secundada pela Igreja Católica, de fixar no centro de Lisboa, de preferência na Praça de São Domingos, um monumento que evocasse simultaneamente a violência passada contra os judeus residentes nesta cidade e o memorável gesto aí realizado no ano dois mil de conversão e reconciliação da comunidade católica com a comunidade judaica, sua irmã mais velha».
Deve concretizar-se esta proposta nesta cidade de Lisboa, em que os judeus foram vítimas da Inquisição e de massacres como o ocorrido em 19 de Abril de 1506. Vale a pena evocar essa violência intolerável e o gesto de reconciliação do Cardeal D. José Policarpo, em 26 de Setembro de 2000, que afirmou, designadamente: «Este centro histórico de Lisboa, onde solenemente nos abraçamos, foi no passado palco de violências intoleráveis contra o povo hebreu. Nem devemos esquecer, neste lugar, a triste sorte dos “cristão-novos”, as pressões para se converterem, os motins, as suspeitas, as delações, os processos temíveis da Inquisição.
Como comunidade maioritária nesta cidade, há perto de mil anos a Igreja Católica reconhece profundamente manchada a sua memória por esses gestos e palavras, tantas vezes praticados em seu nome, indignos da pessoa humana e do Evangelho que ela anuncia…».
Lisboa tem-se afirmado nas últimas décadas como uma das cidades de Europa onde mais se tem desenvolvido o diálogo inter-religioso, como uma grande metrópole cosmopolita.
Como cidadão só posso dizer que considero que devemos trabalhar para concretizar este projecto, que representa um contributo insubstituível para construir uma Lisboa futura que seja uma terra de harmonia.

domingo, outubro 14, 2007

DIA MUNDIAL PARA A ERRADICAÇÃO DA POBREZA


CONVITE


Caras (os) Amigas (os)

No próximo dia 17 de Outubro, Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza, a CIVITAS - Associação para a promoção dos direitos dos cidadãos e a Associação ATD- QUARTO MUNDO promovem, em conjunto, uma iniciativa de luta contra a pobreza.
Vimos convidar-vos a que se reúnam connosco e com pessoas que recusam a situação de exclusão de que são vítimas, junto à Laje em granito preto sob o Arco da Rua Augusta, em Lisboa, pelas 12 horas do dia 17 de Outubro. Esta Laje, que aí colocámos em 1994, assinala a nossa solidariedade com a luta contra a pobreza levada a efeito pela ATD/Quarto Mundo, associação fundada em 1957 pelo padre Joseph Wresinski. Como nela se lê: «Onde os homens estão condenados a viver na miséria / aí os direitos humanos estão violados. /Unir-se para os fazer respeitar é um dever sagrado».
Daremos a voz a pessoas que lutam contra a situação de exclusão e de pobreza e reafirmaremos a nossa determinação em continuar a luta pela dignidade e pelos direitos de todos os seres humanos. Apelamos à unidade de todos nesta luta, em espírito de fraternidade.
CONTAMOS COM A SUA PRESENÇA


CIVITAS – Associação para a promoção dos direitos dos cidadãos
Associação ATD-QUARTO MUNDO

domingo, outubro 07, 2007

FADOS DE CARLOS SAURA

O Fado é uma expressão musical que está profundamente enraizada em Lisboa e em Portugal, a partir do primeiro quartel do século XIX, que merece ser reconhecido como fazendo parte do património cultural imaterial da humanidade pela UNESCO.
O filme «Fados» de Carlos Saura, que contou com excelentes assessores como Carlos do Carmo e Rui Vieira Nery, é um contributo positivo para suportar essa candidatura, que é fundamental levar para a frente com inteligência e determinação.
É um olhar informado, interessado e interessante sobre o Fado na sua pluralidade, tendo o cuidado de o relacionar com outras músicas lusófonas e inclusive de o colocar em diálogo com o flamenco.
A ligação de Portugal a África e ao Brasil foi muito bem entendida por Carlos Saura, que a sublinha quer no que se refere às raízes do próprio género Fado, quer às ligações e múltiplas contaminações que podem estabelecer produtivamente com alguma música que se faz no mundo lusófono.
É preciso uma grande atenção à génese do Fado para incluir o lundum brasileiro e uma grande valorização das ligações a outras músicas lusófonas como a morna de Cabo Verde, com Lura, nascida em Lisboa e o Kola Son Jon, interpretado por um grupo do bairro da Cova da Moura (Amadora).
Há alguns achados como é, por exemplo, a evocação da Severa através de um romance de cordel ou a homenagem a Alfredo Marceneiro pelo grupo de hip-hop NBC e SP& Wilson.
Resulta interessante a forma como se presta homenagem a Amália através da recuperação de imagens de um ensaio e como se liga com a interpretação por Caetano Veloso do fado Estranha Forma de Vida.
A cena da casa de fado com Vicente da Câmara, rodeado de um conjunto de jovens fadistas resulta também muito bem.
A montagem das imagens do 25 de Abril, da saída dos presos políticos de Caxias e do 1 de Maio de 1974, foi bem conseguida, começando com umas estrofes da Grândola, Vila Morena e terminando, de forma algo irónica, com o Fado Tropical de Chico Buarque.
Carlos do Carmo, que foi um dos inspiradores do filme, constitui com Camané e Mariza o núcleo duro dos fadistas, mas todos os outros merecem referência positiva desde os mais experientes como Argentina Santos, até aos mais jovens.
O diálogo musical que se estabelece entre Marisa e o cantor de flamenco Miguel Poveda com base no Meu Fado Meu é um momento alto do filme.
Poder-se-á discutir a forma como o filme foi construído, como uma sucessão de quadros, a inserção da dança, mas temos de reconhecer que mostra o Fado como realidade musical viva, como um rio musical que extravasa para além das margens em que o querem limitar.
O facto de outras aproximações serem possíveis, de haver sempre omissões de acordo com os critérios de cada um, em nada diminui o filme de Carlos Saura.
Este filme irá levar muita gente a começar a interessar-se pelo Fado ou ouvi-lo com uma atenção nova e poderá inspirar novas iniciativas de divulgação que tenham em conta, não só a história do Fado, mas também a consciência de que qualquer género musical vive não apenas das tradições, mas também das contradições e do diálogo que estabelece com outros géneros musicais.
Os que quiserem conhecer a música de que é feito este filme dispõe da edição da banda sonora de Fados, já nos circuitos comerciais.
Este filme merece ser visto, ouvido e discutido, e estou certo que será um êxito.
Espero que seja utilizado como mais uma alavanca para a ofensiva necessária para consagrar o Fado como património cultural imaterial da humanidade.

domingo, setembro 30, 2007

A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DOS IMIGRANTES

O debate sobre a participação política dos imigrantes voltou à Assembleia da República no quadro de uma sessão extraordinária do COCAI (Conselho Consultivo para os Assuntos da Imigração), por iniciativa do Alto Comissário para a Imigração e Diálogo Intercultural em colaboração com o Presidente da Assembleia da República.
É uma iniciativa que merece ser saudada e que assinala o regresso dos imigrantes à Assembleia da República, onde tiveram uma participação assinalável na sessão organizada para assinalar a abertura do Ano Europeu Contra o Racismo, em 1997.
Este debate ocorreu dezasseis anos depois do Grupo Parlamentar do Partido Socialista ter apresentado o Projecto de Lei n.º3/VI, que pretendia regulamentar e exercício do direito de voto nas eleições locais, na base da reciprocidade, tal como já estava previsto na Constituição da República e que foi rejeitado pela maioria de direita então existente.
Na mesma legislatura, estiveram presentes na Assembleia da República, pela primeira vez, como deputados dois membros de associações de imigrantes, Fernando Ka e Celeste Correia.
Só muitos anos depois, também por iniciativa do Partido Socialista, foi aprovada na Assembleia da República a regulamentação do direito de votar e ser eleito a estrangeiros residentes na base da reciprocidade.
A revisão da Constituição da República, em 2001, na sequência de uma longa luta desencadeada por deputados de vários partidos, mas que teve na antiga deputada do PSD, Manuela Aguiar uma batalhadora incansável, aos cidadãos dos Estados de língua portuguesa «com residência permanente em Portugal, são reconhecidos, nos termos da lei e em condições de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros, salvo o acesso aos cargos de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Presidentes dos tribunais supremos e o serviço nas Forças Armadas e na carreira diplomática» (art. 15.º, n.º3).
A entrada em vigor em 5 de Setembro de 2001 do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, conjugado com a revisão constitucional, atrás referida, criou condições para alargar a participação política dos brasileiros com o estatuto de igualdade de direitos políticos, o que só por inércia e falta de iniciativa cívica se não verificou ainda na prática.
Prossegue também no quadro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa o debate em torno do Estatuto de Cidadão da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, cuja aprovação apenas depende das alterações constitucionais e legais em alguns dos Estados-Membros. Nesta matéria há que ser pragmático e admitir começar por avançar com os que tem condições para avançar desde já, como se costuma fazer a nível da União Europeia.
O debate sobre a participação política dos imigrantes não pode ignorar os passos já dados, bem como os retrocessos verificados.
Nas últimas eleições para as autarquias locais não houve campanhas de informação dirigidas á participação dos estrangeiros nas eleições locais, ao contrário do que aconteceu nas anteriores, nem houve progressos na participação de imigrantes nas listas autárquicas, continua a verificar-se uma escandalosa falta de participação equitativa dos portugueses de origem imigrante nas listas candidatas a deputados à Assembleia da República, verifica-se uma ausência de progressos na participação política dos brasileiros com igualdade de direitos políticos.
Neste quadro, há muito a fazer para alargar de forma efectiva a participação dos estrangeiros e dos portugueses de origem migrante na vida política de forma mais equitativa, sem esquecer os cidadãos europeus que só podem votar e ser eleitos para as autarquias locais e para o Parlamento Europeu.
Neste quadro, a única alteração que julgo necessária no quadro da próxima revisão constitucional, é a eliminação da exigência de reciprocidade para o voto nas eleições locais e, talvez, para os órgãos da Regiões Autónomas
Refira-se que o então deputado socialista, António Costa, já o defendeu no plenário da Assembleia da República, em 1991, a eliminação da exigência de reciprocidade no que se refere às eleições locais.
Os direitos de participação política, a nível da Assembleia da República ou das eleições para o Presidente da República, não deveriam ser generalizados a outros estrangeiros, sem que começassem por beneficiar de direitos políticos mais alargados os cidadãos de Estados-membros das comunidades políticas, em que Portugal está inserido, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e a União Europeia (UE).
Sem esquecer que a forma por excelência de participar plenamente na vida política passa pela aquisição da nacionalidade portuguesa. Este é um caminho aberto que felizmente está a ser cada vez mais percorrido por cidadãos de todas as origens.

domingo, setembro 16, 2007

CONFERÊNCIA DE ALTO NÍVEL DA UE SOBRE IMIGRAÇÃO LEGAL

Debater a imigração legal a nível da União Europeia é um facto novo e muito positivo, mas é preciso estar atento aos não ditos e aos mitos de que é recheado este debate.
É positivo que depois de décadas de imigração zero e de Europa fortaleza pareça assumir-se que a União Europeia não poderá fazer face aos seus desafios de desenvolvimento sem o contributo dos imigrantes. É também de saudar que se fale na necessidade de criar canais que permitam a imigração legal, que alguns pretendem, e bem, que sejam rápidos e mais eficazes.
Este consenso esconde profundas divergências sobre prioridades e meios a utilizar, bem como graves erros de análise e mitos.
A questão prévia que valerá a pena colocar é que a imigração legal tem sido dificultada e mesmo impedida por todas as formas e por isso a imigração ilegal tem sido a única possibilidade de imigração. É certo que como referia recentemente o vice-presidente da Comissão responsável pela Justiça e Assuntos Internos, Franco Frattini, numa entrevista concedida a Teresa de Sousa «Não podemos transformar a ilegalidade na normalidade» (Público, 14/11/2007). É verdade, mas é preciso acrescentar que a culpa desta situação foi, primeiro que tudo, de não ser possível imigrar legalmente e deveriam saudar os países que assumiram sem hipocrisias a existência de imigrantes em situação irregular e procederam às legalizações que consideraram necessárias no uso de um direito que ainda dispõem e que, continuarão a dispor nos próximos anos definir quantos imigrantes legais admitem no seu país. A Espanha deve grande parte da sua actual prosperidade à forma aberta como integrou milhares e milhares de imigrantes em situação irregular.
Desde logo e sem pretender ser exaustivos, o consenso tem interpretações diversas.
Os países de pequena dimensão, como a Eslovénia, Chipre e Malta, não têm a mesma sensibilidade e necessidade de imigrantes como a Espanha, a Polónia ou Portugal. Vários países têm apenas os seus horizontes virados para Leste ou para os seus vizinhos mais próximos, não têm as relações tradicionais com África ou com as Américas de Portugal, Espanha, Itália, França, Reino Unido ou Holanda.
Existem muitos problemas não resolvidos que dificultam o debate. É necessário acabar com as limitações à livre circulação entre todos os Estados-Membros da União Europeia, não mantendo limitações aos novos aderentes. Permitir essa circulação terá duas vantagens. A primeira demonstrar que não é a livre circulação desses nacionais que vai substituir a necessidade de imigrantes. Esses países estão também a envelhecer rapidamente. Apenas a Turquia, que está ainda longe de se integrar na União Europeia, é que poderia dar um contributo demográfico (e não só) positivo. Outro escândalo que há que resolver é a exclusão dos cipriotas turcos da União Europeia, que já demonstraram pretendê-lo. Tem que se conseguir a unidade de Chipre.
Fala-se actualmente em imigração legal, mas parte-se do princípio de que se pretendem apenas profissionais altamente qualificados e diz-se com razão que estes na sua maioria tem preferido imigrar para os Estados Unidos, Canadá, ou a Austrália, pelo que se propõe criar uma carta azul para facilitar essa admissão e circulação. Tudo isto esconde o facto que é necessário repetir, a União Europeia precisa muito e irá continuar a precisar de trabalhadores não especializados, como o poderão testemunhar, por exemplo, os agricultores e as famílias que pretendem cuidar de forma humana dos seus idosos.
O facto de se ter realizado nos passados dias 13 e 14 do corrente mês, em Lisboa, uma conferência de Alto Nível sobre Imigração Legal no quadro da Presidência portuguesa da União Europeia é um facto muito positivo, bem como as intervenções feitas nesse quadro, quer pelo Primeiro-Ministro José Sócrates, quer pelo Ministro da Administração Interna, Rui Pereira, quer as conclusões anunciadas por Rui Pena Pires, na qualidade de Comissário da Conferência.
Nada, contudo, autoriza que deixemos de ficar atentos e vigilantes sobre a sequência dos debates e sobre a redacção em concreto das directivas que foram anunciadas pelo vice-presidente da Comissão, Franco Frattini: a relativa aos direitos dos nacionais de países terceiros com emprego legal num Estado membro sem estatuto de residente de longa duração e sobre as condições de admissão e residência de trabalhadores altamente qualificados. De saudar o facto de Frattini defender que a carta dos direitos dos imigrantes que irá apresentar, pretende criar uma base mínima de direitos, que não impedirá os Estados de ser mais generosos no reconhecimento de direitos. É um procedimento que deveria ser sempre adoptado.
É importante acrescentar que as intervenções dos três painéis, a saber sobre canais de imigração legal e gestão de fluxos migratórios, integração e agenda de Lisboa, e migrações e desenvolvimento, foram quase todas de qualidade. Seria bom que viessem a ser publicadas para responsabilizar os que as proferiram e para poderem ser instrumentos de debate alargado.
Outras questões estão em debate relativamente às quais é importante estar atento. É o caso do sancionamento dos empregadores que utilizam trabalhadores em situação irregular. Este debate é necessário, mas não pode viver de falsidades. Não se pode fazer de conta que a Holanda é um país modelo na limitação dos fluxos de imigrantes, escamoteando que a agricultura deste país, como foi bem explicado pelo Professor Hein de Haas, holandês, que ensina na Universidade de Oxford, é externamente concorrencial com base na utilização de imigrantes em situação irregular, o que aliás, como exemplificou, também se verifica noutros países europeus.
Será também necessário para melhor combater o tráfico de pessoas, distinguir combate à imigração ilegal e combate ao tráfico de pessoas.
Em síntese, a Conferência, foi um contributo importante para um debate necessário de que os imigrantes, os agentes económicos e os sindicatos, não podem estar mudos e ausentes.

domingo, setembro 09, 2007

A POLÓNIA E O DIA EUROPEU CONTRA A PENA DE MORTE

A presidência portuguesa da União Europeia pretende instituir o dia 10 de Outubro como o dia europeu contra a pena de morte, coincidindo com o dia mundial já celebrado por diversas organizações não governamentais em todo o mundo.
Portugal, que foi o primeiro país europeu a abolir a pena de morte, tem-se empenhado em que a União Europeia tenha uma posição mais activa a nível mundial.
Está agendada para o próximo dia 9 de Outubro, em Lisboa, uma Conferência para a instituição do Dia Europeu Contra a Pena de Morte. Nessa data pretende-se que seja assinada uma declaração conjunta da União Europeia e do Conselho da Europa.
Esta declaração, segundo referiu Isabel Arriaga e Cunha (Público 07/08/07), permitiria «reforçar a sua posição [dos europeus] nas negociações actualmente em curso nas Nações Unidas para a declaração de uma moratória universal sobre as execuções».
Numa reunião dos embaixadores dos 27 junto da União Europeia, a Polónia tomou uma posição de bloqueio nesta matéria. Defendeu, em alternativa um dia europeu em defesa da vida em geral, o que permitiria condenar o aborto e a eutanásia., considerando inútil dedicar uma data simbólica à luta contra a pena de morte que os Estados europeus já não aplicam.
O assunto será discutido, de novo, numa reunião de ministros da Justiça da União Europeia, que se realizará no próximo dia 17 de Setembro, em Bruxelas.
Esperemos que seja possível conseguir ultrapassar este bloqueio.
O episódio mostra a dificuldade de decisão a nível da União Europeia numa matéria relativamente à qual a União Europeia tem uma posição clara, a condenação inequívoca da pena de morte.
Recorde-se que essa é uma exigência colocada aos países candidatos e que, por exemplo, a Turquia aboliu a pena de morte em todas as circunstâncias, tendo comutado a pena de morte do líder curdo Ocalan a quem tinham sido imputados diversos crimes de homicídio. A atitude de bloqueio assumida pela Polónia numa matéria que deveria merecer natural consenso, só vem reforçar os que pretendem eliminar a regra da unanimidade na quase totalidade das decisões a nível comunitário.
Seria também grave que em nome de uma mais alargada defesa da vida, a Polónia recusasse o seu apoio a uma iniciativa fundamental para tornar um pouco mais humana a nossa humanidade. A pena de morte é aplicada de forma bárbara e por vezes sistemática em países de vários continentes, dos Estados Unidos à China, passando por diversos países de menor dimensão. Abolir a pena de morte faz hoje parte de um mínimo ético indispensável para atingir um limiar de humanidade a nível mundial.
Naturalmente que é apenas um limiar, mas ultrapassá-lo tem um sentido positivo para o futuro das relações entre os seres humanos.
É chocante que o país do Solidariedade, um país que tem afirmado por diversas vezes as suas raízes católicas, tome esta posição. Valeria a pena que os seus responsáveis meditassem esta pergunta colocada por Deus a Caim: «Onde está Abel o teu irmão? Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?» (Génesis 4,9).
Todos sabemos que esta pergunta não incomodou gerações de crentes e não crentes durante séculos, que a foram lendo apenas como uma questão pessoal enquanto aplicavam a pena de morte das formas mais cruéis e perversas, mas hoje tornou-se uma questão que interpela todos os homens de boa vontade. Recordo a iniciativa há alguns anos do Partido Radical em Itália contra a pena de morte e que assentava nesta pergunta de Deus a Caim.
Esta questão mostra também como não se pode simplesmente presumir das supostas raízes deste ou daquele país, a sensibilidade que irá demonstrar em determinadas questões de humanidade. Não são apenas as religiões ou outras correntes espirituais ou filosóficas que moldam as culturas dos povos, mas são também as culturas e o processo histórico, que contribui para as formas como essas correntes religiosas, espirituais ou filosóficas são vividas em determinada época por uma determinada população, como refere Amin Malouf no notável ensaio “As Identidades Assassinas”.
Vale a pena continuar atento ao futuro desta iniciativa contra a pena de morte e às posições que suscita.

domingo, setembro 02, 2007

"AS MULHERES DO MEU PAI" de JOSÉ EDUARDO AGUALUSA



José Eduardo Agualusa é um grande escritor angolano, cidadão do Mundo de Língua Portuguesa.
Em “As Mulheres do Meu Pai” José Eduardo Agualusa agarra-nos da primeira à última página. Este livro editado pela D. Quixote, em Maio de 2007, com uma belíssima capa de Henrique Cayatte, merece o facto de estar a ser um sucesso editorial, tendo chegado rapidamente à quarta edição em Portugal, estando também já editado no Brasil.
Agualusa não é apenas um grande escritor, é também um dos intelectuais que mais tem contribuído para valorizar em Portugal a presença e o contributo dos africanos no passado e no presente para a vida social e cultural portuguesa. Recordemos, por exemplo, “Lisboa Africana” (1993) escrito com Fernando Semedo e Elza Rocha (fotos).
“As Mulheres do Meu Pai” é um livro de viagens pela África Austral, que tem origem numa viagem que efectuou com a cineasta Karen Boswall, radicada em Moçambique, e com o fotógrafo Jordi Burch, no quadro da preparação do argumento de um filme. O livro está a ser transformado em roteiro para esse filme. Este facto estabelece um laço estreito entre a verdade e a ficção. Para além de Karen Boswall ou Jordi Burch, Sérgio Guerra, são também personagens do romance o escritor moçambicano Mia Couto e sua esposa, Patrícia.
Partindo da vontade de uma cineasta portuguesa de origem angolana, de nome Laurentina, de descobrir quem foi o que presume ter sido seu pai, Faustino Manso, famoso compositor angolano que deixou ao morrer sete viúvas e dezoito filhos, a quem deu nome de marcas de cerveja. O romance é construído como um diário, a várias vozes, a partir da perspectiva dos diferentes protagonistas. Oncócua (Sul de Angola), Rio de Janeiro (Brasil), Durban (África do Sul), Luanda (Angola), Quicombo (Angola), Lobito (Angola), Lubango (Sul da Angola), Canyon (Sul de Angola), Espinheira (Sul de Angola), Swakopmund (Namíbia), Lisboa, Salvador (Brasil), Cape Town (África do Sul), Maputo (Moçambique), Quelimane (Moçambique), Ilha de Moçambique, são lugares dessa viagem, através da qual nos fala das mulheres, dos afectos, dos amores, das identidades e das pertenças, das violências, das paternidades biológicas e das que o não sendo, por serem assumidas e vividas são mais verdadeiras. Ao longo deste romance, a identificação de Francisco Manso, contada com o mistério de uma estória policial, vamos descobrindo sentimentos, paisagens, músicas, gastronomia, que dão uma dimensão realista a esta ficção.
José Eduardo Agualusa é um homem grato e generoso. Agradece a Karen Boswall, a Jordi Burch, a Sérgio Guerra, pelo estímulo e contributo para este romance, mas ao longo do livro vai valorizando contributos de outros criadores, através das citações que faz. Registo alguns nomes: o jovem artista plástico Kiluange Liberdade; o poeta Rui Knopfli; a poetisa angolana Ana Paula Tavares, Jorge de Sena, o poeta sul-africano Breyten Breytenbach, António Houaiss, responsável pelo melhor dicionário da língua portuguesa, os escritores Ruy Duarte Carvalho e Mário António.
É um livro em que o português de Portugal se mistura com o português de Angola.
Ao lê-lo, como ao ler os livros de Luandino Vieira, Ruy Duarte Carvalho, Pepetela, percebemos que não podemos falar de literatura em língua portuguesa, ou de para ela procurar atrair a atenção dos leitores, apenas com base nos escritores portugueses como: José Saramago, António Lobo Antunes ou Lídia Jorge, mas que é necessário ter presente, os escritores de Angola, como de outros países de Língua Portuguesa ou das suas diásporas que a renovam e a acrescentam de uma forma desenvolta e inovadora sem precedentes.
A Língua Portuguesa e as culturas de língua portuguesa extravasam as fronteiras físicas, jurídicas e psicológicas de Portugal e é isso a sua força. Portugal está na Europa, mas as culturas de língua portuguesa, incluindo as culturas crioulas, estão no Mundo e têm que saber tirar partido do actual processo de globalização.

quarta-feira, agosto 15, 2007

CABO VERDE MAIS PERTO DA UNIÃO EUROPEIA

Cabo Verde tem manifestado, por diversas formas, o seu empenhamento numa aproximação mais estreita com a União Europeia.
Recentemente o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde, Victor Borges declarou, em Lisboa, que Cabo Verde pretende estabelecer uma parceria especial com a União Europeia, que «optimize todas as potencialidades do acordo de Cotunou» ainda durante a presidência portuguesa da União Europeia (Público, 08/08/07). «Queremos – acrescentou o Ministro Victor Borges - sair da lógica da ajuda pública ao desenvolvimento e manter um diálogo político, que englobe os campos económico, financeiro e orçamental».
Cabo Verde tem mantido o diálogo e manifestado a disponibilidade para colaborar com a União Europeia a outros níveis no que se refere a questões como a imigração clandestina, crime organizado e narcotráfico.
Não se pode esquecer que Cabo Verde, em simultâneo, se tem vindo a aproximar da NATO, tendo-se já realizado exercícios da NATO neste país.
Cabe às autoridades democráticas de Cabo Verde definir e negociar a inserção internacional de Cabo Verde, mas é legítimo aos amigos de Cabo Verde congratularem-se com esta opção e desejarem o maior sucesso à diplomacia cabo-verdiana.
Considero esta evolução natural dada a inserção geográfica de Cabo Verde na Macaronésia, conjunto de Ilhas Atlânticas em que se inserem as Canárias, a Madeira, as Selvagens e os Açores, espaço ao qual tem uma ligação natural.
É preciso não esquecer que o povoamento destas ilhas teve semelhanças que não podem ser ignoradas, para lá das singularidades que dão especificidade a cada um destes conjuntos de ilhas atlânticas.
A ligação muito estreita entre cabo-verdianos e portugueses não pode ser ignorada neste contexto. A caboverdianidade representa uma síntese permanentemente renovada entre as raízes africanas e portuguesas da Nação Cabo-verdiana. Não se podem ignorar os laços de cultura e de família que unem estes povos, sem que isto represente qualquer desconsideração dos laços profundos, mas sempre diversos, que unem os portugueses aos cidadãos de outros países de língua oficial portuguesa.
Mas o que se me afigura ser um argumento incontornável para justificar uma ligação mais estreita entre Cabo Verde e a União Europeia é o facto da maioria da Nação Cabo-verdiana residir já na União Europeia, com destaque para Portugal, ou nos Estados Unidos. É natural que o Estado Cabo-verdiano esteja onde está a maioria da Nação Cabo-verdiana.
Tive oportunidade de abordar já esta questão num encontro realizado em Cabo Verde, em que falei da “A diáspora cabo-verdiana no espaço europeu – laços culturais, económicos e políticos”, que se pode ler aqui.
Acompanhei o aprofundamento dos laços entre Portugal e Cabo Verde para o que contribuíram, de forma decisiva, os governos de António Guterres e que tem tido correspondência na atitude dos governos de Cabo Verde, independentemente da alternância política contribuindo para a construção de uma parceria estratégica entre os dois países.
Inúmeros são os tratados celebrados entre os Portugal e Cabo-Verde, muitos deles extremamente originais, através dos quais se têm tecido laços cada vez mais estreitos entre os dois países, mas atrevo-me a pensar, que depois da independência de Cabo Verde, o Acordo de Cooperação Cambial entre Cabo Verde e Portugal foi o mais importante, tendo criado condições favoráveis para o desenvolvimento de Cabo Verde e para promover a internacionalização da sua economia. Representou também um passo na aproximação da economia de Cabo Verde à União Europeia, após a adesão de Portugal ao Euro.
Portugal tem todas as razões para apoiar, a nível político e diplomático, a pretensão de Cabo Verde de construir uma parceria especial com a União Europeia.
Melhorar a qualidade da integração dos cabo-verdianos em Portugal, a sua participação equitativa na vida cívica, política, social e cultural é também um contributo imprescindível que podemos dar para colocar Cabo Verde mais perto da União Europeia e que tem vantagens para Cabo Verde, para Portugal e para a União Europeia, bem como, para os seus cidadãos.

domingo, agosto 05, 2007

"A RÚSSIA DE PUTIN" DE ANNA POLITKOVSKAYA

O assassinato de Anna Politkovskaya à porta de sua casa em Moscovo em Outubro de 2006 despertou-nos violentamente para o facto da Rússia de Putin ser um país em que se continuam a verificar graves violações dos mais elementares direitos humanos.
Anna Politkovskaya foi uma das heroínas e heróis da luta pelos direitos humanos, a quem prestámos homenagem no Congresso Mundial da FIDH (Federação Internacional dos Direitos Humanos) realizada no passado mês de Abril, em Lisboa. Nesse Congresso tivemos oportunidade de analisar algumas graves violações de direitos humanos no que se refere, por exemplo, às migrações na Rússia, como se pode ver aqui.
Recordar Anna Politkovskaya é dizer que ninguém pode calar uma voz livre e que a verdade é mais forte que o assassinato. Temos uma oportunidade de a recordar, lendo, divulgando e discutindo o seu livro “A Rússia de Putin”, recentemente editado entre nós pela Pedra da Lua, com tradução de António Costa Santos.
O retrato que nos faz da Rússia de Putin faz regressar à nossa memória os piores fantasmas para os que ainda viveram no Portugal de Salazar. São, naturalmente, realidades muito diversas, mas a existência de um poder acima das leis, a eliminação de adversários políticos, a coragem que é necessária para dizer não, e, resistir são pontos comuns.
A sua imagem da Rússia é muito diferente de um país estável, que aperfeiçoa o seu regime democrático e que se vê confrontado com o terrorismo de inspiração islâmica na Chechénia. É um país em que o poder está concentrado, verticalmente, em Putin, em que as todo poderosas Forças Armadas «são um sistema fechado nada diferente de uma prisão», em que um conhecido jornalista, Paul Khlebnikov, por escrever sobre o “capitalismo de gangsters” que prospera na Rússia foi metralhado e morto, quando saía da redacção da revista em que trabalhava, em que o deputado Victor Cheropov foi pelos ares com o rebentamento de uma granada em Vladivostok, sua terra natal, quando disputava eleitoralmente a presidência da Câmara.
O livro não é obra de um analista ou de um cientista político, mas sim de uma jornalista, que nele deixa as suas “reacções emocionais”. O retrato que nos faz é implacável para um poder cujo cinismo procura denunciar. O texto que lhe acrescentou sobre a tragédia de Beslan é particularmente significativo. O autoritarismo de Putin gera a cobardia e a pusilanimidade dos quadros intermédios e tudo isto conduziu à morte centenas de pessoas.
Anna Politkoskaya não tem qualquer espécie de simpatia pelo grupo que fez reféns cerca de 1500 pessoas entre crianças, professores e pais na Escola Básica n.º1 de Beslan, na Ossétia do Norte, que qualifica de “gang multinacional de bandidos”, mas não deixa de se indignar pela forma irresponsável como as autoridades dependentes de Putin geriram este processo.
A jornalista denuncia a mentira, a forma como se procura permanente manipular o povo russo e a comunidade internacional. Impressionou-me o facto de durante o sequestro de Beslan, perante o agravar da situação e face às mentiras oficiais que eram divulgadas na imprensa, escrever: «Nessa altura, alguns familiares começaram a bater nos jornalistas».
Percebe-se melhor ainda a sua indignação se tivermos presente que segundo se pode ler na Wikipedia aqui, tentou ser mediadora para salvar vidas humanas, mas ficou doente, tendo-se verificado no hospital que sofria de envenenamento. Apenas tinha bebido chá servido durante o voo quando se dirigia para lá.
Não nos podemos enganar e fazer de contas que não há problemas. As mortes inquietantes que se têm vindo a verificar são um sinal de alarme. Temos que procurar conhecer melhor a situação na Rússia e apoiar os que se batem pelos direitos humanos, por mais e melhor democracia.
As análises de Anna Politskoskaya sobre a forma como as autoridades russas actuam, não são inquestionáveis, nem temos que estar de acordo com todas elas, mas quando alguém é assassinado pelas suas opiniões, a presunção de que ela tinha razão torna-se iniludível.

domingo, julho 29, 2007

OS CIDADÃOS DA CPLP TÊM DIREITOS E QUEREM PARTICIPAR



Na passada semana foi lançado, em Lisboa, um livro evocativo dos dez anos da CPLP- Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, criada em 17 de Julho de 1996, por decisão da Conferência de Chefes de Estado e de Governo então realizada, em Lisboa.
A criação da CPLP foi o ponto de chegada de um conjunto diversificado de iniciativas culturais, políticas e diplomáticas, que teve um marco significativo no primeiro encontro de Chefes de Estado e de Governo, realizado em Novembro de 1998, em São Luís do Maranhão (Brasil), a convite do Presidente do Brasil José Sarney, e no qual se decidiu avançar para a criação do IIPL (Instituto Internacional da Língua Portuguesa). Tenho dado o meu contributo como cidadão, agente político e estudioso para a consolidação desta Comunidade, não quero deixar passar este momento sem felicitar o Secretariado Executivo pelo trabalho sério de consolidação e de aprofundamento deste projecto. Mas, simultaneamente quero manifestar a minha insatisfação relativamente à necessidade de envolver mais activamente os cidadãos.
A CPLP não pode ser apenas uma Comunidade de Estados tem de ser cada vez mais uma Comunidade de Cidadãos.
A prova mais clara da ratificação deste projecto pelos Povos e Cidadãos da CPLP é a permanente realização de iniciativas transnacionais nas mais diversas áreas sociais, culturais e profissionais, que visam consolidar dimensões desta Comunidade e são da exclusiva iniciativa dos cidadãos e não o resultado de qualquer orientação dos órgãos da CPLP, que nascem de baixo para cima e não de cima para baixo.
A primeira condição prévia para que assim suceda é informar cada vez mais e melhor os cidadãos dos Estados-Membros das iniciativas que estão em agenda ou já foram concretizadas.
A CPLP já dispõe, actualmente, de um sítio na Rede que é um instrumento de informação e de trabalho que considero útil. Foi também positiva a divulgação de um jornal informativo, distribuído com o Courrier Internacional, embora devesse também ser difundido com os jornais de maior circulação em todos os Estados-Membros.
O lançamento de livros, folhetos informativos é positivo, mas dever-se-á usar mais e melhor a Rede. Foi uma boa iniciativa possibilitar aqui a possibilidade de se enviar o email para passar a receber informações, mas podem ser exploradas outras iniciativas. Poder-se-ia, por exemplo, criar um blogue de blogues no qual se fossem fazendo ligações para textos sobre e o desenvolvimento da CPLP, que fossem publicados nos diferentes Estados-Membros.
Ao contrário, por exemplo da União Europeia, esta Comunidade, começou pela cultura, e a sua ligação aos cidadãos não se fez através da concessão de subsídios e fundos, pese embora a dimensão de cooperação que também nela existe.
Em contrapartida, faz todo o sentido que a sua existência represente acréscimos de cidadania para os cidadãos dos Estados-Membros que a compõem.
Como se inscreveu na Declaração Constitutiva, considera-se imperativo: «Contribuir para o reforço dos laços humanos, a solidariedade e a fraternidade entre todos os povos que têm a Língua Portuguesa como um dos fundamentos da sua identidade específica e, nesse sentido, promover medidas que facilitem a circulação dos cidadãos dos Países Membros no Espaço da CPLP».
Alguns acordos foram já aprovados e estão em vigor como se pode ver aqui, mas é fundamental prosseguir com determinação os trabalhos do Grupo de Trabalho alargado sobre Cidadania e Circulação e aprovar a Convenção Quadro Relativa ao Estatuto do Cidadão da CPLP.
Para reforçar a participação dos cidadãos é fundamental consolidar a dinâmica de cooperação interparlamentar, através da institucionalização como órgão da CPLP de uma Assembleia Parlamentar, junto da qual fosse reconhecido o direito de petição com um âmbito a definir. Esta seria a melhor forma de dar sequência ao objectivo inscrito na Declaração Constitutiva de: «Estimular o desenvolvimento de acções de cooperação interparlamentar».
São sugestões de medidas possíveis e exequíveis que permitiriam tornar este décimo aniversário num novo ponto de partida, para bem dos Estados e, sobretudo, dos cidadãos da CPLP.

domingo, julho 22, 2007

SOPHIA DE MELLO BREYNER / MARIA BETHÂNIA

Sophia de Mello Breyner Andresen foi para mim a descoberta deslumbrada da poesia quando ainda era um jovem estudante do liceu e desde então tornou-se uma presença poética permanente. Mais tarde li com entusiasmos a sua prosa, com destaque para os “Contos Exemplares”.
Sophia foi uma cidadã exemplar, de matriz cristã, que se bateu com frontalidade contra o salazarismo e que lutou depois por um socialismo em liberdade. Mas o que mais me maravilhou sempre foi a sua qualidade humana e a sua condição de poeta, que partindo da procura de «uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima a procurar uma relação justa com o homem» (Posfácio, Livro VI; Moraes Editores, 5.º edição, 1976).
Sabendo que vivia «num sítio tão frágil como o mundo», «onde tudo nos quebra e emudece/onde tudo nos mente e nos separa»; como diz no poema cantado por Maria Bethânia, Sophia exprimiu sempre a sua confiança no progresso das coisas, num sentido positivo para a vida, acreditou sempre que era possível transformar o Caos em Cosmos e os momentos intensos que lhe foram dado viver faziam com que tivesse agradecido a Deus por existir.
Não esquecerei a sua morte e a presença do seu corpo na Igreja da Graça, uma Igreja belíssima, em cujo altar esquerdo estão os Santos negros, que a Irmandade dos Homens Negros de Nossa Senhora do Rosário tanto contribuiu para divulgar, e cuja memória é necessário avivar, uma Igreja que fica tão perto da Travessa das Mónicas onde vivia.
Fez no passado dia 2 de Julho, três anos, que Sophia morreu, mas a sua poesia permanece bem viva.
Para assinalar a data foi publicado um conjunto de setenta poemas e textos num volume intitulado «A Sophia homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen», organizado pelo PEN Clube Português e editado pela Caminho.
Com excepção de Yao Jingming, todos os textos são assinados por escritores e poetas portugueses. Foi uma sentida homenagem com poemas de textos de qualidade e com dois interessantes ensaios, um de Manuel Gusmão, outro de Maria João Reynaud.
Mais expressiva e atingindo milhões de pessoas foi a homenagem que lhe prestou essa extraordinária cantora brasileira, Maria Bethânia, com um novo e extraordinário disco “Mar de Sophia”.
É um convite para vibrarmos com a beleza da sua música, que simultaneamente nos convida a descobrirmos uma poesia luminosa e fraternal, de que a sombra não está ausente.
Maria Bethânia neste seu disco conjuga textos de Sophia com letras de canções em que a inspiração da cultura negra brasileira, como em o “Canto de Oxum” de Toquinho e Vinicius de Morais, se mistura com outras que mergulham na poesia de matriz portuguesa, ou são mesmo portuguesas, como o fado “O marujo português” de Linhares Barbosa e Artur Ribeiro.
Este disco constrói-se a partir de diversas referências culturais e simbólicas, costurando a procelária e o pirata do mar de Sophia com a evocação de Oxum e Oiá, criando uma unidade que as reúne, o que só é possível fazer com cultura, talento e gosto.
Este trabalho foi dedicado significativamente por Maria Bethânia «ao meu querido amigo» António Alçada Baptista.
Maria Bethânia tem cantado outros poetas portugueses como Fernando Pessoa e Manuel Alegre.
Começa a existir felizmente reciprocidade e não são apenas os brasileiros a descobrir e divulgar poetas e músicos portugueses, mas também grandes cantoras portuguesas como Maria João e Teresa Salgueiro a cantar canções brasileiras, num percurso de que foi pioneira Eugénia Melo e Castro.
A Língua Portuguesa une cada vez mais portugueses e brasileiros e africanos lusófonos, permitindo um novo achamento mútuo e a partilha das emoções e existe um cada vez maior número de cidadãos, para quem independentemente do passaporte, a Pátria é a Língua Portuguesa, que nos é comum.
Vamos ouvir, uma vez mais, “Mar de Sophia” de Maria Bethânia e ver como as une a paixão pelo mar. O disco inicia-se, aliás, de forma significativa, com o “Canto de Oxum” que traduz a ligação entre cultos religiosos de origem africana e o mar, e com a “Inscrição” de Sophia: «Quando eu morrer voltarei para buscar/os instantes que não vivi junto do mar».

domingo, julho 15, 2007

FESTA DA DIVERSIDADE

Afirmar que há um lugar para todos foi o objectivo central da Festa da Diversidade, que teve lugar este fim-de-semana, no Terreiro do Paço, em Lisboa.
A Festa teve uma maior participação e um maior envolvimento do Governo e da União Europeia, relativamente aos seis anos anteriores em que a Rede Europeia Anti-Racista e o SOS Racismo tiveram um papel determinante na sua organização.
O facto deste ser o Ano Europeu para a Igualdade de Oportunidades levou naturalmente à sua inserção no conjunto das actividades programadas para o comemorar, como se pode ver aqui.
A União Europeia esteve representada pelo Camião Europeu da Diversidade que passou por Lisboa e esteve estacionado no Terreiro do Paço, que pretende ser um meio imaginativo para promover uma sociedade mais justa, fundada no reconhecimento do direito à igualdade de oportunidades, combatendo toda e qualquer discriminação fundada no sexo, raça ou origem étnica, religião ou crenças, deficiência ou orientação sexual.
A Feira assentou na presença de organizações não-governamentais, mas também na música, no teatro, na gastronomia, no artesanato, em debates e dança,
É positivo que a Câmara Municipal de Lisboa tenha disponibilizado um espaço tão rico de significado como o Terreiro do Paço para a sua realização contribuindo para dar visibilidade à diversidade e ao cosmopolitismo que caracterizam Lisboa cada vez mais. Não é preciso ir à Feira para o constatar, basta andar na ruas e, sobretudo, viajar nos transportes públicos, que são hoje os espaços por excelência de diálogo intercultural da cidade.
As setenta e seis associações representadas são bem demonstrativas da diversidade que existe na cidade. A Feira é uma janela de oportunidade, aproveitada por associações do mais diverso tipo, que não são necessariamente as mais significativas em cada área, mas sim aquelas que entendem que é útil estar presente. É também um espaço de publicidade institucional, onde estão presentes: o Instituto do Emprego e da Formação Profissional, o Instituto Português da Juventude, a Santa Casa da Misericórdia e Lisboa, ao lado de organizações não-governamentais críticas como a ATTAC-Portugal, a Plataforma artigo 65, Colectivo Múmia Abu-Jamal.
Algumas (poucas) Associações de imigrantes como a Casa do Brasil, Associação Sabor-Ucranianos em Portugal, Casa de Moçambique, a Associação de Cubanos Residentes em Portugal, a Solidariedade Imigrante e poucas associações religiosas, a saber, Comunidade Bahá’i de Portugal, a União Budista Portuguesa, coexistiram com uma multiplicidade de associações que visam prevenir, combater os mais diversos tipos de discriminação ou promover uma cultura de intervenção como o Chapitô ou o Teatro do Oprimido.
Para além de Associações presentes desde sempre como o SOS Racismo, ou o Olho Vivo, de organizações como a UMAR ou a associação de Mulheres Contra a Violência, que combatem a discriminação das mulheres, ou da Fundação AMI ou os Médicos do Mundo, verifica-se uma significativa presença de organizações que visam combater a discriminação em função da orientação sexual, como a Opus Gay, a ILGA ou as Panteras Rosas, ao lado de uma associação de apoio às grávidas como a Ajuda de Mãe, Associação de solidariedade social.
Muito significativa foi a presença de organizações ligadas a determinados problemas de saúde ou tipo de deficiência. Sem querer ser exaustivo, refiro, por exemplo: a APPACDM, ligada aos cidadãos deficientes mentais, a APPDAutistas, a Associação de Apoio aos Doentes Depressivos e Bipolares, a Associação dos Deficientes da Forças Armadas, a Associação Promotora de Emprego de Deficientes Visuais, a CERCI de Portalegre ou o Grupo de Jovens da Associação Paralisia Cerebral de Viseu.
A enorme variedade de objectivos das associações presentes não é isenta de contradições e de alguns equívocos.
Ao comentar uma intervenção do Teatro do Oprimido um destacado dirigente de uma associação anti-racista, sublinhou a necessidade de perceber o que é específico nos diferentes tipos de discriminação. O racismo é uma realidade, diferente da homofobia, ou do machismo.
Penso que tinha razão, perceber as diferenças de que se revestem as discriminações, é condição necessária para uma maior eficácia no assegurar a igualdade de oportunidades para todos.
Todas as Festas da Diversidade ganhavam em sublinhar que, como se afirma no artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: «Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade».
Foi assim que tudo começou.

domingo, julho 08, 2007

A POBREZA - NEGAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

A pobreza constitui uma grave negação dos direitos humanos fundamentais e das condições necessárias ao exercício da cidadania. É com esta afirmação clara que começa a petição à Assembleia da República da iniciativa da CNJL (Comissão Nacional Justiça e Paz), cujo texto podem ler aqui.
Os signatários desta petição consideram que a negação dos direitos humanos fundamentais que a pobreza representa é eticamente condenável, politicamente inaceitável e cientificamente injustificável.
Pierre Sané, subdirector-geral da UNESCO, defendeu recentemente, na Conferência “Desenvolvimento global e solidário: que lugar para a cidadania”, promovida pela CNJP, que a pobreza é uma questão de direitos humanos. Afirmou que «hoje no mundo existe o suficiente para assegurar que todos possam viver uma vida com dignidade», como se pode ler aqui, e acrescentou ser necessária uma partilha mais justa, que encontra obstáculos para se concretizar na «falta de redistribuição adequada, nas políticas económicas injustas e na falta de solidariedade nos países e entre os países».
Recorde-se que Pierre Sané, foi apresentado por Alfredo Bruto da Costa, que sublinhou a importância deste tipo de análise para os trabalhos sobre a pobreza e exclusão que tem desenvolvido.
Manuela Silva, a actual presidente da CNJP, e Alfredo Bruto da Costa têm-se empenhado no combate à pobreza e na luta pela inclusão e a cidadania para todos.
Na petição, solicita-se à Assembleia da República que: «reconheça a pobreza como uma violação grave dos direitos humanos; estabeleça um limiar oficial de pobreza, em função do rendimento nacional e das condições de vida padrão na nossa sociedade, que sirva de referência obrigatória à definição e avaliação das políticas públicas de erradicação da pobreza bem como à fixação das prestações sociais; crie um mecanismo parlamentar de observação e acompanhamento das políticas públicas, seus objectivos e instrumentos, no que respeita aos seus impactos sobre a pobreza, e que o mesmo esteja habilitado ao exercício de uma advocacia colectiva em favor dos pobres; proceda, anualmente, a uma avaliação da situação da pobreza no nosso país e do progresso feito na sua erradicação.»
Todos sabemos que os esforços realizados no combate à pobreza e à exclusão durante os governos de António Guterres não prosseguiram e que a implementação das medidas propostas no Plano Nacional para a Inclusão (PNAI) 2003-2005, ficou comprometida com a sua saída do governo.
Valerá a pena, ter em conta ao traçarmos novos objectivos no combate à pobreza uma rigorosa avaliação da nova geração de políticas sociais então definidas, da forma como foram implementadas e dos resultados práticos alcançados.
O que está em causa é que a pobreza afecta cerca um quinto da população residente em Portugal, e por isso não se resolve apenas com sobras ou gestos de generosidade esporádica.
Isto não significa que não mereçam todo o apoio e simpatia os que procuram combater diariamente a fome de muitos, como o Banco Alimentar contra a Fome, ou os que promovem acções de solidariedade espontânea. Todas essas acções e todos os que as promovem são imprescindíveis.
A pobreza e a exclusão têm, contudo, causas estruturais, como se afirma na petição, e por isso exigem políticas públicas para as erradicar, que só não existem pelo facto de sermos cidadãos passivos que não dizemos com clareza aos poderes públicos que a existência da pobreza é intolerável e que tem de ser erradicada.
Ter o mínimo indispensável a uma existência condigna é um direito humano fundamental, que tem de ser assegurado a todos os cidadãos e cidadãs sem qualquer discriminação.
Manifestamos desde já a nossa adesão a esta petição e este blogue está disponível para contribuir, dentro das suas possibilidades, para o desenvolvimento de um movimento de opinião que exija políticas públicas mais eficazes de erradicação da pobreza, sem deixar de incentivar o contributo da sociedade civil para alcançar este objectivo.

domingo, julho 01, 2007

MIA COUTO - ATENÇÃO ÀS PESSOAS

Sempre tive um grande interesse pela obra de Mia Couto e pela sua profunda sensibilidade que se alimenta de uma escuta atenta às pessoas diversas que fazem a riqueza humana e cultural de Moçambique. O seu olhar sobre as pessoas toca-me profundamente. Gostei, especialmente, de “A Varanda de Frangipani”.
A atribuição do Prémio da União Latina de Literaturas Românicas, em 16 de Abril de 2007, a Mia Couto chamou a atenção dos grandes meios de comunicação social portugueses sobre sua obra. Tudo isto acontece quando está em cena no Teatro Nacional D. Maria II a peça “Vinte e Zinco”, de sua autoria.
Mia Couto recusa-se a classificar as pessoas em categorias que as dividem artificialmente. Um livro que devia fazer parte da educação humana de qualquer cidadão é “Cada Homem é uma Raça”, no qual escreveu: «Toda a pessoa é uma humanidade individual, cada homem é uma raça».
Foi por isso que intencionalmente citei essa frase deste livro ao terminar a intervenção que em nome de Portugal fiz na “Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia, e a Intolerância”, que teve lugar em Durban, em 2001.
Mia Couto é também, como referiu o júri da União Latina ao justificar a atribuição do prémio, um escritor «de uma euforia vocabular que vem influenciando escritores mais jovens em todo o espaço da língua portuguesa».
A euforia vocabular não é exclusiva de Mia Couto; outros escritores de língua portuguesa, como o brasileiro João Guimarães Rosa, ou como a portuguesa Maria Velho da Costa, ou o angolano José Luandino Vieira, cultivaram a euforia vocabular de outras formas, mas é justo realçar a sua influência em escritores mais jovens.
Mia Couto tem cultivado com mestria o conto dando tratamento literário à fala popular moçambicana sendo, como afirmou o júri «um extraordinário contador de estórias na mais pura tradição africana».
A atribuição de prémio a Mia Couto foi também justificada pelo júri pela vontade de «reconhecer e premiar a participação dos africanos de língua portuguesa e em particular dos moçambicanos, na revitalização desse idioma». O júri sublinhou ainda que: «De instrumento de dominação colonial, o português transformou-se ao longo das últimas três décadas, numa ponte de afectos e num importante factor de unidade nacional, em países, como Angola e Moçambique com muitas línguas e etnias».
É muito significativo que o prémio lhe tenha sido atribuído em Roma por um júri, com grande diversidade linguística, composto por: Vincenzo Consolo (Itália); Gabriela Adamesteanu (Roménia), José Eduardo Agualusa (Angola); Santiago Gambôa (Colômbia), Lídia Jorge (Portugal), Joan Francesc Mira (Espanha-língua catalã), Tierno Monénembo (Guiné), Rosa Montero (Espanha) e Jean Noel Pancrazi (França).
Uma parte do montante do prémio é destinado a apoiar a tradução do autor em línguas latinas em que não está ainda publicado.
Mia Couto é o exemplo de um escritor que utiliza com invulgar mestria a língua portuguesa e que por isso mesmo não pode ser apenas rotulado de escritor moçambicano. Um homem atento, dotado de humildade na escuta dos outros, que escreve: «A pessoa deve sair do mundo tal igual como nasceu, enrolada em poupança de tamanho», (in “A varanda de Frangipani”, Caminho, p.160).
Para os que ainda não perceberam que o português só será uma língua com futuro se souber incorporar toda a riqueza da diversidade dos seus falantes e escritores nos diferentes continentes. Faz mais sentido falar hoje de literatura de língua portuguesa, do que apenas de literatura portuguesa.
Ainda bem que assim é.