domingo, maio 28, 2006

A AVENTURA DA MORAES

A Livraria Morais Editora, a carta do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, a Salazar, que o condenou ao exílio, a JUC (Juventude Universitária Católica), a JOC (Juventude Operária Católica) e a LOC (Liga Operária Católica) tiveram um papel destacado na formação de militantes católicos que se comprometeram na construção de uma Igreja na linha do Concílio Vaticano II e no afrontamento da desordem estabelecida e na luta pela democracia. Dito, de uma forma intencionalmente simplificada, sem a Morais e a Acção Católica, a presença dos católicos na sociedade portuguesa no pós 25 de Abril teria sido outra e muito mais limitada e muito mais pobre seria a cultura portuguesa contemporânea.
O livro “A Aventura da Moraes”, editado pelo Centro Nacional de Cultura, que organizou uma exposição evocativa em simultâneo, permite familiarizar os mais novos com uma livraria editora que dos finais dos anos 50 ao início dos anos 70 do século passado contribuiu para mudar profundamente as mentalidades e para levar muitos católicos e não-católicos a comprometer-se na transformação da sociedade portuguesa. Este livro, além da nota de abertura de Guilherme d’Oliveira Martins, contém textos de alguns dos principais actores desta aventura: António Alçada Baptista, António Jorge Martins, Pedro Tamen, João Bénard da Costa, Frei Mateus Cardoso Peres O.P. e Joana Lopes.
É difícil perceber hoje a importância da resistência cultural representada por esta livraria editora. Alguns factos talvez ajudem a perceber. A Morais publicou a edição em língua portuguesa da revista teológica “Concilium” entre Janeiro de 1965 e Dezembro de 1969. Como as autoridades eclesiásticas portugueses não davam o imprimatur para a sua publicação, a revista com a colaboração de D. Hélder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, passou a ter uma base fictícia no Recife, o que permitia ao bispo brasileiro Dom Aloísio Lorscheider, então presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, dar as licenças necessárias para a sua publicação.
Um Caderno, da outra revista editada pela Morais, “O Tempo e o Modo” dedicado ao tema “O Casamento” foi apreendido, como o foi, por exemplo, o livro de Martin Luther King “Força para Amar” da colecção Círculo de Humanismo Cristão, que nunca consegui adquirir, nem depois de 25 de Abril, e que infelizmente ninguém se lembrou de reeditar.
A revista “O Tempo e o Modo” teve um enorme papel não só na tomada de consciência política de muitos cristãos, como também na vida cultural já que permitiu promover uma literatura desenvolta para lá das referências culturais do regime e a ortodoxia neo-realista, promovendo escritores e ensaístas como Jorge de Sena, Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner Andresen, Pedro Tamen, Agustina Bessa-Luís, Virgílio Ferreira, Eduardo Lourenço e Nuno de Bragança.
“O Tempo e o Modo” marcou também o início de uma colaboração assumida de católicos e não-crentes no quadro da própria revista. Foi graças a essa opção pela abertura que foram chamados a colaborar na revista entre outros, Mário Soares, Salgado Zenha, Mário Sottomayor Cardia, Jaime Gama, Jorge Sampaio e José Luís Nunes. Estou certo que esta colaboração facilitou a futura entrada de militantes católicos no Partido Socialista desde a sua fundação em 1973.
Para entender o desgaste que esta livraria editora causou nas estruturas do regime há que ter presente, como refere António Alçada Baptista neste livro «nesse tempo, a Igreja, o Exército, o funcionalismo público e a burguesia de província (estruturalmente ligada à Igreja) constituíam as forças sociais de apoio à situação saída da Revolução do 28 de Maio de 1926».
Tudo o que significasse fragilizar um destes pilares ameaçava a solidez do regime e, na verdade, muitos dos jovens universitários mobilizados para a tropa como oficiais tinham sido marcados por todo este trabalho cultural, que contribui para os tornar participantes activos no 25 de Abril.
Revelou-se acertada a frase de Emmanuel Mounier que figura na contra capa da colecção de livros “O Tempo E O Modo” «A acção começa na consciência. A consciência, pela acção, insere-se no tempo. Assim, a consciência atenta e virtuosa procurará o modo de influir no tempo. Por isso, se a consciência for atenta e virtuosa, assim será o tempo e o modo».

P.S. - O Dia de África, que se comemora a 25 de Maio, foi assinalado, como é habitual, por várias iniciativas entre nós. Contudo, no ano em que se comemoram quarenta anos da Organização da Unidade Africana (OUA) é pena que não se tenham realizado iniciativas verdadeiramente portadoras de futuro. É muito grande o desconhecimento colectivo da história e da realidade africana, dos laços profundos que unem a Europa e a África. No que se refere a Portugal está por fazer a história do contributo dos africanos para o código genético e cultural do País.
Portadora de futuro foi a atribuição do maior prémio da Língua Portuguesa, o Prémio Camões, ao grande escritor angolano Luandino Vieira. É preciso sublinhar o contributo fundamental que os escritores africanos de Língua Portuguesa têm dado para o enriquecimento deste património comum, que não tem sido apenas obra de brasileiros e portugueses. A Luandino Vieira foi atribuído em 1965, como recordou a escritora Isabel da Nóbrega numa carta ao jornal Público, em de Maio de 2006, o Prémio de Romance e Novela da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE), pelo seu livro “Luuanda” por um júri composto por Alexandre Pinheiro Torres, Fernanda Botelho, Manuel da Fonseca, Augusto Abelaira e João Gaspar Simões, que por esse facto foram presos e levados para a prisão de Caxias.
O facto de Luandino Vieira ter decidido recusar o prémio por “razões pessoais e íntimas” não altera a justeza da sua atribuição.
Agustina Bessa-Luís, que foi o único membro do júri que votou contra, preferia, por exemplo, um grande escritor cabo-verdiano, Germano de Almeida.
De saudar a iniciativa das Feiras do Livro de Lisboa e Porto por este ano estarem a dar destaque à literatura angolana. É um bom começo, há que familiarizar os portugueses com os escritores de Língua Portuguesa de todo o mundo. Só assim se contribuirá para estreitar os laços entre os seus falantes e se construirá entre todos eles uma «Irmandade da Fala», para usar a expressão utilizada pelos nossos amigos da Galiza.

domingo, maio 21, 2006

MELHOR INFORMAÇÃO, MELHOR DEMOCRACIA

Li o livro de Manuel Maria Carrilho "Sob o Signo da Verdade" como um testemunho fundamental para perceber como é que um projecto sério e apaixonado para afirmar Lisboa como uma sociedade mais solidária, mas competitiva e cosmopolita no contexto português, europeu e mundial foi vítima de uma campanha planeada e determinada que o procurou destruir como pessoa e cidadão.
Penso que todos os cidadãos que queiram perceber como, muitas vezes, os projectos de séria renovação são destruídos entre nós ganharão em ler este livro, que coloca muitas questões que é necessário aprofundar: o peso dos interesses ligados à construção civil; o papel das agências de informação; a inveja na sociedade portuguesa e a facilidade com que permite fazer passar mentiras por verdades; a falta de rigor e de isenção profissional de alguns jornalistas.
É verdade que, como refere, a maior parte dos jornalistas demonstram serenidade, deontologia e rigor. Conheço profissionais competentes e rigorosos que têm escrito excelentes trabalhos de investigação e livros de entrevistas, que são documentos fundamentais para conhecer a realidade portuguesa actual em todas as suas dimensões. Há excelentes jornalistas especializados em muitas áreas, mas é verdade que a cobertura da actualidade política e das campanhas eleitorais não obedece, muitas vezes, a esses padrões de qualidade.
A minha leitura deste livro não é neutra. Conheço e sou amigo do Manuel Maria Carrilho desde a juventude, mas por isso mesmo fico mais indignado pela imagem artificial e distorcida que dele foi transmitida por alguns jornalistas.
A forma vergonhosa como foi feita a cobertura, logo na pré-campanha, da visita a um Lar de idosos em Benfica, em que o tinha acompanhado, a manipulação total sobre o conteúdo da apresentação da sua candidatura no CCB, todas as coisas miseráveis que se escreveram sobre a presença do filho mais novo e da mulher durante a campanha, a forma como foram silenciadas as suas mais importantes iniciativas e propostas para o futuro da cidade, em contraste com a forma como o seu principal adversário foi poupado e protegido, obrigam-nos a pôr a questão do porquê. Daí a importância deste livro que no dizer de José Saramago "Dá-nos a saber como, porquê e por quem foi vencido".
Isto não significa que Manuel Maria Carrilho não tenha cometido erros, como, aliás, reconhece no seu livro. O erro capital foi, na minha opinião, a ausência de uma coligação de esquerda, em novos moldes, para a Câmara de Lisboa, que sempre defendi. Não ignoro as dificuldades quer internas, quer externas colocadas pelo irrealismo do PCP, mas ele devia "ter feito mais para que em Lisboa houvesse uma coligação de esquerda".
A derrota de Manuel Maria Carrilho foi também a de todos os que ansiavam por assegurar uma nova ambição para Lisboa. O cinzentismo dos primeiros meses de gestão municipal confirmam-no.
Manuel Maria Carrilho vem também dizer-nos com este livro que não devemos resignar-nos, que devemos ser exigentes sobre a qualidade da informação e da democracia que temos.
Sentimos que não é fácil a um cidadão intervir. A leitura deste livro torna-o ainda mais patente, mas o acolhimento e o debate que está a suscitar, devem ser para nós motivo de esperança. Nenhuma batalha está (definitivamente) perdida para quem sabe o que é importante fazer e não desiste de lutar.

PS. Foi aprovada esta semana na Assembleia da República por unanimidade a primeira iniciativa legislativa de cidadãos, que pretende revogar parcialmente o Decreto-Lei n.º73/73, que permite a não arquitectos assinar projectos. Esta iniciativa popular promovida pela Ordem dos Arquitectos, recolheu mais de 35.000 assinaturas tendo dado origem ao Projecto de Lei n.º 183/X. É um motivo de satisfação para todos os que defendem que a qualidade da democracia pode melhorar com a articulação de formas de democracia participativa com a democracia representativa. É uma vitória dos cidadãos em geral, mas é justo felicitar Helena Roseta por ter sabido, como Bastonária da Ordem dos Arquitectos, confiar nos cidadãos e por os ter envolvido num debate que irá contribuir para nos tornar mais atentos e exigentes relativamente às construções muitas vezes sem qualidade, que estão a ser edificadas.
Também não podemos deixar de considerar significativa uma outra iniciativa de cidadãos que foi anunciada esta semana e que pretende a suspensão dos julgamentos pela prática do aborto. Esta iniciativa legislativa de um grupo de cidadãos unidos em torno do lema "Proteger a vida sem julgar a mulher" vai na linha do que tem sido defendida por duas deputadas independentes, Teresa Venda e Maria do Rosário Carneiro, eleitas nas listas do Partido Socialista, que ainda não conseguiram que uma sua iniciativa nesse sentido fosse agendada e votada.
Duas conclusões podem ser retiradas desde já a existência destas iniciativas legislativas. Estas são um instrumento ao dispor de todos os cidadãos e irão surgir de todos os quadrantes ideológicos.
Outra conclusão que se pode desde já tirar é que qualquer que sejam as opções que venham ser defendidas na próxima sessão legislativa sobre o enquadramento legal a dar ao aborto, o debate será muito mais exigente do que no passado e cada um dos participantes terá de fundamentar com rigor as razões das suas posições.
São boas notícias para a cidadania e para a qualidade da democracia.

domingo, maio 14, 2006

IMAGEM DO SAGRADO, IMAGENS DO MUNDO

O Centro de Reflexão Cristã está a promover as suas Conferências de Maio, dedicadas ao tema "Imagem do Sagrado, Imagens do Mundo", com um atitude de total liberdade de espírito e com o intuito de permitir o diálogo entre pessoas com diversos pontos de vista, cujo programa completo podem consultar aqui.
Na primeira conferência sobre o tema "A representação do sagrado no mundo da imagem" a escultora Clara Menéres referiu-se aos problemas e às querelas que suscitou a representação do sagrado no confronto entre o judaísmo, o islamismo e o cristianismo, bem como, em diversos momentos no interior do cristianismo, manifestando-se criticamente contra a forma como a figura humana é hoje muitas vezes degradada designadamente em campanhas publicitárias, muito longe da seriedade e o rigor que, por exemplo, se punha na produção de ícones no quadro da espiritualidade ortodoxa. João Bénard da Costa analisou também esta questão referindo-se a outros períodos de questionamento da representação do sagrado no interior do cristianismo, por exemplo, por parte da reforma protestante. Ambos sublinharam que a questão da representação do sagrado se tornou mais viável no interior do cristianismo, em virtude de como diz S. João «o Verbo fez-se homem e habitou entre nós».
O facto de Deus se ter feito homem em Jesus, do qual nenhum Evangelho canónico ou apócrifo descreve os traços físicos, tornou legítima a sua representação, a qual teve uma influência decisiva na própria emergência e desenvolvimento da pintura e esculturas europeias.
O padre Peter Stilwell, como teólogo, sublinhou que a representação do sagrado reveste hoje outras formas e nos chega pelo cinema, por vezes, onde menos se espera e pela televisão. Referiu a propósito a morte de João Paulo II, a procissão da Imagem da Virgem de Fátima pelas ruas de Lisboa e os funerais da Madre Teresa de Calcutá ou até da Princesa Diana dada a imagem que tinha criado de dedicação a causas humanitárias.
Ficou a convicção de que sem a opção do cristianismo pela representação do sagrado teria sido outra a arte na Europa, tendo a esse propósito, João Bénard da Costa evocado os trabalhos de Cristina Campo, para quem sem o cristianismo não teríamos tido a arte moderna.
Na segunda conferência o debate centrou-se sobre "Património da fé e na liberdade criadora", Faranaz Keshavjee deu como exemplo de liberdade criadora a forma como na comunidade ismaili é encarado o património cultural, referindo-se com detalhe ao Centro Ismaili de Lisboa e ao culto doméstico dos ismailis do Tajiquistão. Sublinhou como procuram conjugar a tradição, com o enraizamento local, pela utilização de materiais e formas que estabelecem pontes com o património local.
José Luís de Matos abordou a evolução das concepções e representações do sagrado desde as civilizações agrícolas, às civilizações mercantis, da oralidade ao audiovisual, passando pela escrita. Fez o que se poderemos designar como um itinerário de Deus, para evocar os trabalhos de Régis Debray sobre estas matérias, que citou.
Nuno Teotónio Pereira evocou como foi difícil o emergir do Movimento de Renovação da Arte Religiosa, há cerca de cinquenta anos, num contexto marcado pelas limitações que o salazarismo colocava à expressão artística, que não tivesse uma inspiração nacionalista. Contou como arquitectos, pintores e músicos procuraram uma arte cristã, que estivesse de acordo com as realidades sociais, a sensibilidade e a espiritualidade modernas e não procurasse repetir de forma artificial o que tinha correspondido a outros tempos. Foram referidos, como exemplos, a Igreja de Santo António de Moscavide, concebida por António Freitas Leal e João Almeida e a Igreja do Sagrado Coração de Jesus da autoria de Nuno Teotónio Pereira.
Em aberto ficou uma afirmação de José Luís de Matos de que o audiovisual e a Internet colocam desafios de grande novidade e radicalidade à representação e à ligação com o sagrado, que a Igreja tem dificuldade em pensar. Este é precisamente o tema da próxima quarta-feira "Imagens do religioso na comunicação social", com a participação de Abddoal Karim Vakil, da comunidade islâmica, Ester Mucznik, da comunidade israelita de Lisboa, e do Padre José Manuel Pereira de Almeida .

PS. Já aqui manifestámos o nosso apoio à iniciativa da Presidente da Câmara de Vila de Rei, Irene Barata, de promover a vinda de famílias brasileiras para o seu concelho, contribuindo para o revitalizar após os incêndios que o devastaram. Foi uma boa iniciativa que merece todo o apoio. Apesar de todas as medidas que o governo se propõe adoptar para promover a natalidade, o que acontece entre nós pela primeira vez, vamos precisar de muitos milhares de imigrantes para assegurarmos a nossa continuidade demográfica e o nosso desenvolvimento como País. É por isso com indignação que recebi a notícia de que a extrema-direita se manifestou contra a vinda de famílias brasileiras. É mesquinho, e uma prova de ignorância da cultura e da história portuguesa, qualquer que fosse a nacionalidade ou a cor destes imigrantes. Um acto de xenofobia contra brasileiros é além de mais ridículo. Vale a pena recordar que como escreve Faíza Hayat, na sua Crónica, «..., que o actual sotaque brasileiro é provavelmente mais próximo do sotaque português da há quinhentos anos, que o sotaque dos portugueses dos nossos dias. Certos versos de Camões, por exemplo, apenas funcionam como decassílabos perfeitos se forem pronunciados com sotaque brasileiro» (vide, "Globalização e cosmopolitismo", Xis, nº 358).
Manuel Maria Carrilho apresentou esta semana o seu livro "Sob o Signo da Verdade", no qual analisa a forma como foi alvo de actuação manipuladora por parte de alguns jornalistas, aquando da sua campanha para a Câmara Municipal de Lisboa. Referir-me-ei a este livro no próximo post, mas não posso deixar de registar, que no "Público" de 12 de Maio de 2006, na notícia do evento se podia ler «Presente esteve também Carmona Rodrigues, o principal adversário do candidato socialista, bateu algumas palmas de circunstância ao discurso de Carrilho, em que este o acusou de, num debate na SIC, durante a campanha, ter usado um argumento que sabia ser falso».
No dia 13 de Maio de 2006, lê-se no "Público" que «Por um lamentável lapso, o PÚBLICO escreveu que Carmona Rodrigues esteve presente no lançamento do livro, o que é falso», em nota a uma notícia intitulada "Director de agência de Comunicação vai processar Carrilho". Depois deste facto, fiquei mais convencido da necessidade de abordar as questões levantadas pelo livro de Manuel Maria Carrilho.

domingo, maio 07, 2006

O 1º DE MAIO - "DIA SEM IMIGRANTES" NOS EUA


O 1º de Maio de 2006 foi assinalado em grande número de países por demonstrações mais ou menos significativas de luta pelos direitos dos trabalhadores, que mais do que nunca precisam de estar unidos num mundo marcado pelos efeitos da globalização sobre as condições de trabalho, pela desregulamentação e pela precarização das relações laborais.
O que foi novo e surpreendeu pelo seu ineditismo foi, contudo, a greve dos imigrantes em situação irregular nos Estados Unidos da América, greve ao trabalho, à escola, às compras e às vendas. Este é um acontecimento que irá marcar a história presente e futura dos Estados Unidos. A forma como evoluir a situação terá repercussões a nível, não apenas dos EUA, mas também a nível mundial. Espanta-me por isso a limitada atenção que mereceu na imprensa portuguesa, em que muitas questões menores ligadas aos fenómenos migratórios têm por vezes tanto destaque.
Também me surpreende que a presença em Portugal daquele que é provavelmente o mais importante sociólogo das migrações da actualidade, o americano de origem cubana, Alejandro Portes, que apresentou na Fundação Luso-Americana, um novo livro em Português, intitulado «Estudos Sobre as Migrações Contemporâneas, Transnacionalismo, empreendedorismo e a segunda geração», edição Fim do Século, numa cuidada tradução de Frederico Ágoas, revista com rigor por Margarida Marques, só tenha merecido a atenção da Rádio Renascença,
A greve dos imigrantes em situação irregular nos EUA é um facto muito significativo porque mostra até que ponto propostas de radicalização do combate à imigração em situação irregular, incluindo a sua criminalização, está a conduzir ao desespero, à luta e a conflitos nas ruas por parte de cidadãos pacíficos que tendem a adoptar uma estratégia de invisibilização social.
Tendo colocado a questão a Alejandro Portes, na apresentação do seu livro, sobre o que irá acontecer, retivémos a ideia de que tudo vai depender da legislação que o Senado vier a aprovar. Uma legislação radical como é defendida pela direita radical norte-americana só conduziria ao confronto e ao agravar da situação. Estas propostas não têm uma racionalidade económica e estão relacionadas com algumas manifestações de intelectuais da direita americana, quanto ao peso dos hispânicos na sociedade americana. Recordemos o recente livro de Samuel Huntington, «Who Are We?», no qual considera que os afro-americanos já são americanos, mas os hispânicos não têm condições para vir a ser americanos.
Ora são cerca de 11 milhões o número de imigrantes em situação irregular nos EUA, na sua maioria hispânicos, sendo 6 milhões mexicanos. Muitos destes imigrantes são jovens que crescem indocumentados com as graves consequências que tudo isso tem para a sua integração na sociedade americana. Ocupam lugares nos sectores de serviços, agricultura e construções, essenciais para o funcionamento da economia e da sociedade americana. Talvez seja por isso que a direita inteligente, de que é expressão o Wall Street Journal, muitos deputados e senadores, republicanos e democratas, bem como académicos liberais, se demarcam das propostas da direita radical, que são anti-económicas e desrespeitadoras dos direitos dos imigrantes, e procuram outros caminhos para a regulação dos fluxos migratórios para os EUA. Há três máximas da experiência que convêm reter: a regulação dos fluxos migratórios tem de partir da análise concreta da situação existente e não de algumas ideias fixas definidas à priori; não vale a pena criar obstáculos à imigração legal quando os agentes económicos consideram necessário contratar imigrantes, sob pena de se estimular a imigração ilegal; a criminalização dos imigrantes em situação irregular não é solução para o combate a esse tipo de imigração, só contribui para gerar tensões sociais evitáveis.

PS. Nesta semana há que saudar a presidente da Câmara de Vila de Rei, Inês Barata. Não sei porque partido foi eleita, nem me interessa. Depois de um ano que destruiu a maior parte do património florestal do seu concelho, não se resignou ao abandono e ao avanço da desertificação. Promoveu a vinda legal de famílias imigrantes do Brasil para repovoar terras sem gente que os incêndios devastaram. Estas famílias vieram de Maringá , cidade que está geminada com Vila de Rei, e para a qual entre 1940 e 50 foi intensa a imigração portuguesa. Sejam bem vindos. Espero que esta iniciativa seja bem sucedida, e que a imigração de um país lusófono venha a ser considerada por outros municípios com problemas idênticos.
Uma última nota: O Público titulava no passado dia 4 de Maio de 2006 na primeira página «Imigrantes legais já são quatro por cento da população portuguesa». O "Já" é manifestamente dispensável.
Temos que perceber entrámos na era das migrações a nível mundial, e que nem a nossa economia, nem a nossa segurança social são sustentáveis sem o aumento da imigração legal.