domingo, novembro 20, 2011

O CHALET DA MEMÓRIA DE TONY JUDT

O Chalet da Memória de Tony Judt reúne os últimos ensaios publicados no New York Review of Books, escritas depois do livro Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, que foi o seu testamento político e a que nos referimos aqui.
O livro está bem traduzido, e escrito de acordo com a nova ortografia portuguesa, lendo-se com grande prazer.
São crónicas construídas mentalmente durante as noites de insónia por Tony Judt numa fase já muito avançada da esclerose lateral amiotrópica (ELA), a doença de Lou Gehrig, que o vitimou e ditadas durante o dia, quando isso lhe era ainda possível.
Tony Judt combateu a doença, com força e determinação, que honra a dignidade e a coragem do género humano, mas este não é um livro sobre a doença, é sobre a vida que viveu, a situação cultural e política, porque a doença “o inferno não é uma experiência transmissível”, como escreveu Timothy Garton Ash.
A realidade da doença é-nos dada expressamente através de um ensaio intitulado Noite, que situa as condições em que surgiram estes ensaios e muito a propósito do desconforto que sente refere a Metamorfose de Franz Kafka.
É admirável como os ensaios se articulam de forma a constituírem uma construção ordenada e coerente a partir da memória decisiva de um momento marcante da sua vida, as férias de Inverno passadas em 1957 ou 1958 num chalet, “uma pequena pensione, um hotel de família na vila antiquada de Chesières, no sopé da abastada região de esqui de Villars, na Suiça francófona”.
As narrativas e ensaios têm uma subtil, mas real ligação entre si. O autor refere-o: “… durante estes pequenos exercícios, percebi que estava a reconstruir - como se fossem legos – segmentos entrelaçados do meu próprio passado que antes nunca pensei que estivessem relacionados”.
É um livro de memórias mas que nunca estão desligadas das suas opções sociais e políticas. Ao falar dos Autocarros da linha Verde e do seu cheiro, de a Comida ou dos comboios em o Desejo Mimético, o historiador e o cidadão estão bem presentes na análise crítica das involuções verificadas em matéria de políticas públicas de transportes.
O autor é um cidadão, cosmopolita, um social-democrata universalista, que não se limita a recordar, mas que através destes feuilletons, continua a intervir, com inteligência como humor e mesmo com ironia. Leiam-se, por exemplo, Paris foi ontem, Revolucionários ou Raparigas, raparigas, raparigas. São muito interessantes as reflexões que faz sobre a fase em que defendeu um sionismo de esquerda, os ensinamentos que disso retirou, e o olhar crítico sobre as políticas de identidade defendidas por muitos académicos, seus colegas da universidade.
Tony Judt tem o que se designa como uma identidade hifenizada, um inglês, que se considera nova-iorquino, um judeu assumido como se pode ver em Toni, que confessa “conheço melhor a liturgia do anglicanismo do que muitos ritos e práticas do judaísmo”, receia que o futuro nos traga demasiada identidades excludentes. Afirma; “… iremos ter saudades dos tolerantes, dos que estão à margem: a gente das franjas. A minha gente.” Daí o seu gosto pelas “cidades mundiais”, o seu amor por Nova Iorque.
Termina a sua viagem pelas recordações regressando às Montanhas Mágicas da Suiça, neste caso a Murren, onde “nunca nada ali correu mal”, evocando um pequeno comboio na montanha. Ele que tanto gostava de comboios, diz: “Não podemos escolher onde começar a nossa vida, mas podemos acabar onde quisermos. Sei onde estarei: a ir a lado nenhum em especial naquele pequeno comboio para todo o sempre”.
É um livro a ler e a reler, escrito por um ser humano excepcional, por um intelectual, que se afirmou até ao limite das suas forças como um social-democrata universalista.
Há só um aspecto em que espero, se engane. O comboio em que embarcou para todo o sempre não está condenado a ir a lado nenhum.

RELAÇÕES IGREJA / CULTURA

« Diálogo com criadores culturais não pressupõe

o silenciamento das diferenças»

O que é mais importante (criar, manter, repensar) na relação da Igreja com a Cultura?
A Igreja para manter uma relação mutuamente enriquecedora com a Cultura tem que encarar sem medo as transformações culturais, sociais e políticas e saber ler (e reler) permanentemente os sinais dos tempos. Tem que aprender a viver com naturalidade num mundo num processo acelerado e vertiginoso de mutação.
Num mundo em que as crises económicas e financeiras dos Estados até agora dominantes anunciam o advento de uma nova época e a emergência de novos Estados, línguas e culturas e em que os frutos da revolução científica e tecnológica e as novas tecnologias de informação invadem o quotidiano dos cidadãos, a Igreja tem de repensar permanentemente as suas relações com a Cultura.
Em Portugal, a Igreja tem vindo a promover uma Pastoral da Cultura que tem sido capaz de estabelecer pontes com muitos criadores culturais, crentes e não-crentes, e despertado comunidades cristãs para a importância da cultura para a pessoa humana ter acesso verdadeiro e pleno à humanidade. Naturalmente que há muito para fazer e repensar.
Num País em que a crise financeira, se transformou numa crise económica, existem riscos sérios de subalternização da importância da Cultura e do trabalho dos criadores culturais. O discurso sobre a necessidade do empobrecimento num contexto de crise corre o risco de esquecer que uma coisa é ter menos recursos para gastar, outra coisa é esquecer que não só de pão vive o homem, mas precisa de sentido e beleza. As despesas com a Cultura não são gastos, são investimentos numa sociedade mais justa, humana e solidária e contribuem para aumentar as exportações.
Não desistimos de ter esperança estamos certos que o desenvolvimento individual e coletivo é possível, mobilizando todos os recursos disponíveis, nomeadamente, o contributo dos criadores culturais, não apenas dos escritores e poetas, mas também dos cineastas, dos músicos, filósofos, dos arquitetos, dos dançarinos, de todos os criadores culturais sem exceção.
O repensar da relação da Igreja com a Cultura em Portugal passa por alargar e descentralizar o diálogo com os criadores culturais, crentes e não-crentes, ao longo de todo o País, estabelecendo pontes com os que se encontram espalhados pelo mundo e com o mundo de Língua Portuguesa.
O repensar da relação da Igreja com a Cultura deve assentar no direito de todos à cultura e à sua realização prática, no promover em cada pessoa a consciência do direito à cultura e do dever de se cultivar.
A atitude da Igreja no diálogo com os criadores culturais não pressupõe o silenciamento das diferenças e das divergências, mas deve ser marcada pelo saber escutar as críticas, as inquietações, as perguntas.
A relação da Igreja com a Cultura deve, como defendeu Júlia Kristeva, em Assis [27.10.2011], ousar a “aposta na renovação contínua da capacidade dos homens e das mulheres para crer e viver em conjunto (...) para que a humanidade possa prosseguir por muito tempo o seu destino criador”.

Este meu depoimento integra a edição de novembro de 2011 do "Observatório da Cultura" (n.º 16). Leia mais respostas à pergunta.

domingo, novembro 13, 2011

DE OLHOS BEM ABERTOS DE MANUEL MARIA CARRILHO

Para estarmos à altura do que nos acontece, precisamos de perceber como aqui chegámos e o que podemos fazer para sair daqui.
De Olhos Bem Abertos de Manuel Maria Carrilho, reúne no essencial crónicas que publicou no DN, revela-se um contributo imprescindível para este exercício. Apesar de serem crónicas datadas revelam-se de uma paradoxal actualidade, porque nascem de um olhar que soube ver para além do momento. Apenas um exemplo: “…por muito sombria e aflitiva que seja, e é, a situação no curto prazo, não vale a pena ter ilusões: só no médio/longo prazo será possível ultrapassar as dificuldades que enfrentamos”. Esta constatação não é de agora, é do ano passado, mas toda a crónica em que se insere se mantém actual.
A arquitectura do livro assenta em quatro pilares: crise, Europa, democracia/cultura e Portugal. Manuel Maria Carrilho parte da conjuntura, mas olhando sempre para além do curto prazo, tendo em consideração as reflexões de outros, que enriquecem a sua visão.
É um livro escrito com inteligência que se lê com prazer, porque é sempre inteligente e estimulante, mesmos que não partilhemos todas as suas análises e todas as suas teses, particularmente, sobre os últimos anos de governação do PS.
Se quisermos renovar a prática política dos socialistas, precisamos de o fazer com ideias novas, sem esquecer os momentos socialistas das nossas anteriores governações, mas sem escamotear que se verifica o esgotamento do modelo de desenvolvimento que foi seguido nas últimas décadas.
Partilho com Manuel Maria Carrilho a ideia que foi uma tragédia da nossa história política recente que António Guterres “o líder mais qualificado, mais dotado e mais preparado, de todos os líderes que o PS teve, não tenha tido a maioria absoluta”.
Todo o livro nos convoca para o desafio, com que conclui o prefácio: “… lutar por uma Nova República, isto é, por uma visão de futuro que (…) se estruture em torno de um novo paradigma de desenvolvimento assente na qualificação do território, das suas instituições e das pessoas, bem como a renovação dos valores da democracia e da reinvenção das causas e dos objectivos da esquerda social-democrata …”.
Manuel Maria Carrilho não é apenas um pensador, é um cidadão politicamente comprometido, que já demonstrou quando foi chamado a exercer funções políticas, que sabe fazer, e que sabe dizer não.
Teve razão quando era embaixador de Portugal na UNESCO e se recusou a votar na candidatura do egípcio Farouk Hosni, conhecido pelas suas posições anti-semitas e anti-democráticas para Director-Geral da UNESCO, o qual felizmente não foi eleito e está hoje na prisão no Egipto.
Este é um livro que se pode ler não respeitando a arquitectura que lhe deu o seu autor, mas sendo guiado pelos nossos próprios interesses ou curiosidade, saltar, por exemplo, de “E o que será um novo paradigma?” (pp40-41), para “Fado candidato” (pp.111-115) ou “A missa lusófona” (pp 115-117), e para “Fazer contas não basta” (pp. 193-196) ou as entrevistas nele transcritas.
O debate sobre o futuro de Portugal no contexto europeu e mundial numa óptica da esquerda social-democrata exige a mobilização dos cidadãos para além do âmbito do PS, como António Guterres teve a coragem de fazer quando promoveu os Estados Gerais para uma Nova Maioria. Não se trata de multiplicar reuniões, de contabilizar presenças, ou sequer contributos para legitimar resultados previamente definidos. É necessário promover um verdadeiro debate, não esquecendo que as palavras e as ideias podem ser performativas.
A crise internacional, a desconstrução da União Europeia a que assistimos, a ausência de políticas que conjuguem a necessária austeridade com crescimento económico e desenvolvimento em Portugal, tornam mais premente renovar o programa socialista sem esquecer, como refere Manuel Maria Carrilho, os “… grandes valores do socialismo, à sua matriz igualitária, e às suas grandes causas, como a igualdade, a educação, e a cultura”.
O facto deste livro nos convocar para essa tarefa, torna a sua leitura imprescindível.