domingo, fevereiro 24, 2008

A OPOSIÇÃO CATÓLICA AO ESTADO NOVO (1958 - 1974)

Foi publicado recentemente o livro “A Oposição Católica ao Estado Novo 1958-1974”, da autoria do jovem investigador João Miguel Almeida, que é um livro de leitura imprescindível para compreender o papel do catolicismo em Portugal no processo de transição democrática.
O livro inicia a colecção «História Hoje» das Edições NelsondeMatos e devemos assinalar que a edição é feita com um bom gosto, qualidade, capacidade de inovar e de arriscar, que não existe nas grandes editoras.
Como afirma Fernando Rosas no Prefácio, o livro é o resultado «do minucioso e bem documentado labor de investigação do dr. João Miguel Almeida». Sendo esta uma questão que sempre me interessou, devo confessar que aprendi muita coisa que desconhecia com a sua leitura, porque o livro não se limitou a fazer uma síntese do já publicado, mas debruçou-se sobre as fontes primárias, ouviu muitos dos participantes, recorreu a diversos arquivos, pontualmente, ao Arquivo do MNE e ao Foreign Office para esclarecer aspectos das relações diplomáticas entre o Estado Novo e a Santa Sé.
João Miguel Almeida assinala os problemas metodológicos com que se defrontou que têm a ver com as características da oposição católica no período em causa «o mais grave dos quais consiste na indefinição do objecto de estudo: não há um partido, uma organização, listas de militantes, congressos, programas políticos disponíveis para análise».
Apesar disso consegue traçar-nos com muito rigor um retrato do essencial desse período, mesmo quando se adivinha que terá matéria para muitos artigos posteriores com o aprofundamento de muitas das questões abordadas.
Gostaria de referir alguns aspectos que se podem retirar da leitura deste livro: a forma como a hierarquia da Igreja Católica se deixou condicionar pelo regime; a importância da demarcação profética face ao regime feita pelo bispo do Porto D. António Ferreira Gomes, por bispos em Moçambique e pelo clero angolano favorável à independência; a importância dos movimentos da Acção Católica e do Concílio Vaticano II na formação de militantes que viriam a ter um papel destacado na separação dos católicos do regime e na participação nos sindicatos e nos partidos que emergiram com o 25 de Abril; a política de colaboração com os católicos promovida, de forma diversa, por líderes políticos oposicionistas, como Mário Soares e Álvaro Cunhal que contribuiu para afastar a possibilidade de uma questão religiosa.
Este livro é, sem dúvida, o mais completo até hoje publicado sobre os católicos e a sua Igreja nas suas relações com o Estado Novo e é um livro que era necessário escrever.
Para quem pretenda uma informação sobre a sinopse deste livro recomendo que consulte aqui o magnífico sítio na Rede do SNPC - Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Igreja Católica. A qualidade da pastoral da cultura que está em desenvolvimento sobre a responsabilidade de D. Manuel Clemente, actual bispo do Porto, é um sinal muito positivo sobre a Igreja Católica renovada que está em construção.
Este livro insere-se no trabalho de uma nova geração de investigadores que estão a dar contributos inovadores para escrever a história de hoje, com ligações a equipas como a do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa ou do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. A aposta de Nelson de Matos em editar livros como este será bem sucedida, porque corresponde a uma necessidade de conhecermos melhor o passado recente.
Sempre me senti devedor dos caminhos abertos pelas gerações que me antecederam que recusaram a desordem estabelecida pelo salazarismo. Quero por isso manifestar a minha gratidão a um desses católicos que ontem morreu, Joaquim Pinto de Andrade, angolano, obrigado ao exílio em Portugal quando ainda era padre, que foi sempre um católico e um cidadão exemplar, de quem tive o privilégio de ser amigo.

domingo, fevereiro 17, 2008

KOSOVO, AQUI TÃO PERTO

A anunciada proclamação unilateral da independência do Kosovo vai marcar profundamente o futuro da União Europeia. Não é, por isso, uma questão que nos seja distante, mas que terá repercussões em Portugal, que tem militares portugueses integrados na KFOR. A independência do Kosovo terá custos elevados que terão de ser suportados pela União Europeia no seu conjunto.
Escrevi sobre o Kosovo em 1998 o seguinte: “Mas não é apenas em Timor-Leste, território não autónomo, que se verificam violações sistemáticas dos direitos humanos: também, por exemplo, no Kosovo, província da Jugoslávia, que viu os seus poderes e de autonomia limitados, se tem verificado a violação sistemática dos direitos da maioria albanesa. Como se refere no relatório de 1988 da Amnistia Internacional: «Ao longo do ano, ocorreram quase diariamente incidentes nos quais a polícia espancou e maltratou pessoas de etnia albanesa, incluindo mulheres, crianças e idosos».
A violação sistemática dos direitos humanos tende a desencadear a revolta contra a injustiça e opressão que, por vezes, se traduz na violação dos direitos humanos de pessoas inocentes de forma arbitrária”, in: “Repensar A Cidadania”, Editorial Notícias.
Não pretendo com isto dizer que antecipei a independência de Timor-Leste e do Kosovo, mas apenas recordar a responsabilidade que os ultra-nacionalistas sérvios tiveram no início do processo.
Não é suficiente invocar estes factos para legitimar a independência unilateral do Kosovo, nem podemos ignorar a evolução positiva que se verificou posteriormente na Sérvia no sentido da democracia e do respeito pelos direitos humanos.
Sempre considerei um erro a tendência de muitos países da União Europeia para apoiarem com entusiasmo a fragmentação da ex-Jugoslávia, onde estive no tempo de Tito acompanhando os saudosos camaradas Mário Sottomayor Cardia e Francisco Ramos da Costa. É evidente que o direito à autodeterminação e à independência têm de ser respeitados, mas também há que assegurar internacionalmente os direitos humanos de todos e não deve ser estimulada a constituição de estados numa base «étnica» real ou imaginária.
No caso do Kosovo temos de constatar que a Sérvia não exerce a jurisdição sobre o Kosovo desde 1999, nem tem condições para a voltar a exercer, mas não podemos ignorar as preocupações da minoria sérvia, a fragilidade económica e institucional do novo Estado, nem a dimensão que assume a criminalidade organizada.
O novo Estado vai necessitar do empenhamento das Nações Unidas e da União Europeia. A União Europeia não deve, aliás, reconhecer o Kosovo em termos que sejam considerados como uma ruptura com a aproximação que vinha fazendo relativamente à Sérvia. A única solução será fazer acompanhar o reconhecimento da independência do Kosovo, com a garantia à Sérvia de um acordo de associação e de estabilização, que lhe permita confiar numa futura integração, com o Kosovo, na União Europeia.
A margem é muito estreita e a Holanda opôs-se recentemente a esta aproximação à Sérvia, com a alegação de que este país não entregou ainda ao Tribunal Penal Internacional de Haia, dois dos principais criminosos de guerra responsáveis por crimes na Bósnia. Se não é uma justificação meramente cínica, é pelo menos, uma utilização perversa da invocação da virtude a nível das relações internacionais. Depois da difícil vitória do candidato presidencial pró europeu nas eleições sérvias, não podemos virar as costas aos democratas sérvios.
Também não podemos deixar de admitir que se possam verificar efeitos perversos desta independência unilateral, com o surgimento de movimentos separatistas em outros países europeus e, particularmente, em países vizinhos.
Vivemos tempos de incerteza, as decisões como o reconhecimento da independência do Kosovo são um risco político, mas não creio que depois de tudo o que se passou desde 1999, seja possível deixar de o fazer.
A União Europeia tem de se preparar para uma longa permanência no Kosovo, como na Bósnia, de apoiar o seu desenvolvimento económico, mas terá também de assegurar o respeito pelos direitos da minoria sérvia para que possa viver em liberdade e segurança nas suas casas e no seu país.
Faço votos, neste dia da independência, que os albaneses e os sérvios se possam sentir cada vez mais como cidadãos kosovares e aprendam a viver juntos e em paz.

domingo, fevereiro 10, 2008

MAIS SOCIALISMO NO PARTIDO SOCIALISTA

A reunião realizada em Lisboa, no dia 9 de Fevereiro, de militantes socialistas que apoiaram Manuel Alegre nas eleições presidenciais, em que participaram militantes socialistas de todo o País, incluindo das Regiões Autónomas Açores e Madeira, permitiu um alargado debate sobre a necessidade de mais socialismo na acção do Partido Socialista.
Não se trata de discutir os princípios inspiradores do Partido Socialista que continuam consensuais, mas de lutar contra o seu esvaziamento na prática governativa em diversas áreas. Ao dizê-lo reconheço que este Governo tem deixado, em outras áreas, marcas socialistas, com que, aliás, sempre me congratulei.
Não podemos, contudo, ignorar o autismo, a insensibilidade, a auto-ilusão, a falta de preocupação com a avaliação em concreto do resultado prático das medidas que são tomadas, que desenhadas em abstracto parecem funcionar, mas que transpostas para a realidade têm efeitos perversos que são desprezados, sobretudo, não podemos ignorar a vida dura e difícil de milhares de portugueses, o aumento do desemprego, do sobreendividamento, da desigualdade social, a diminuição da esperança dos jovens no futuro.
As intervenções de Manuel Alegre têm manifestado uma opção deliberada de não abdicar da força inspiradora dos valores do socialismo democrático, de não se contentar com respostas que são apresentadas como as únicas soluções, mas que são, por vezes, o resultado da pressão do neoliberalismo ou embrulhadas numa pretensa neutralidade técnica, como se pode ver aqui. O eco crescente que as tomadas de posição encontram dentro e fora do Partido Socialista são um sinal de que milhões de cidadãos sentem necessidade de confrontar permanentemente as respostas socialistas com as propostas neoliberais. É nesse quadro que deve ser entendida a criação de uma Corrente Nacional de Opinião Socialista de que fala Luís Tito aqui.
Vasco Pulido Valente deixa-nos hoje no Público, em “Ainda há socialismo no PS?”, um desafio que não pode ser iludido. Diz que: «Alegre sabe que o mundo mudou e o que ele quer, no fundo, é um indefinido (e indefinível) socialismo para um mundo diferente». Acrescenta: «Não lhe ocorre por um segundo que o socialismo fazia parte do mundo velho e morreu com ele».
Cabe-nos definir, com todos os militantes socialistas que o pretenderem e independentes de esquerda, novas respostas socialistas para alternativas ao programa neoliberal ou meramente conservador. Basta de lamentações e de resignações, é preciso apresentar soluções alternativas. Temos de mostrar aos descrentes ou resignados que Vasco Pulido Valente não tem razão, que o socialismo democrático continua a ser capaz de inspirar respostas novas para um mundo diferente.
O que está em causa no que se refere a esta corrente, não é disputar o poder dentro do Partido Socialista a qualquer nível, que seja: secções, federações, órgãos nacionais.
Sobre estas matérias existem diferenças de posição entre os militantes socialistas que se identificam com esta corrente.
Como militante do Partido Socialista, considero que tenho o direito e o dever de lutar para que a sua actuação se paute pelos valores do socialismo democrático e pela reforma do seu funcionamento e não renunciarei ao exercício dos meus direitos.
Tive oportunidade no anterior Congresso do Partido Socialista de dizer frontal e lealmente o que pensava da política do governo em várias áreas. O tempo decorrido mostrou que muitas das críticas eram pertinentes.
Não renunciarei a dar o meu contributo, no próximo Congresso, para uma orientação que considere ser mais consequente com os valores do socialismo democrático.
A luta pelo socialismo democrático extravasa o Partido Socialista, mas o seu sucesso exige um Partido Socialista em que se revejam todos os que aspiram a uma sociedade, mais justa, mais igualitária, mais livre, mais solidária e mais fraterna, o que manifestamente não acontece actualmente.

domingo, fevereiro 03, 2008

É PREMENTE O ACORDO ORTOGRÁFICO

Continuamos a assistir a processos dilatórios que retardam a entrada em vigor do Acordo Ortográfico, a que me referi aqui, mas isso não é motivo para ficarmos parados e calados.
O debate tem prosseguido na blogosfera, como assinala Porfírio Silva aqui.
Muitos dos críticos da nova ortografia esquecem que hoje escrevemos de forma muito diversa do que se escrevia, antes das reformas ortográficas do século passado.
Recordemos algumas grafias que foram alteradas: consoantes dobradas que foram eliminadas em palavras como “alli”, “aquelle”, “offendidos”, “effeito”, “fallavam”, “desapparecerem”, “vaccas”, “elle”, “commandante”; y que foi substituído por i , por exemplo, em “systema”, consoantes mudas que foram eliminadas em palavras como “ahi”, “escripta”, “assignando”, “christão”,“enthusiasmo”, “sahia”.
São exemplos tirados ao acaso da consulta de um livro escrito de acordo com a ortografia anterior. Recomendo o exercício para quem tenha dúvidas sobre o carácter convencional da ortografia.
Sendo convencional a ortografia, não é arbitrária ou anárquica, é regulada por normas devidamente fundamentadas, sob pena de, a prazo, não sermos capazes de nos lermos uns aos outros. A reforma ortográfica de Gonçalo Viana entrou em vigor em 1911. Seguiu-se o Acordo Ortográfico de 1943, proposto pela Academia das Ciências de Lisboa, que apenas foi ratificado por Portugal. Foram introduzidas pequenas alterações em 1973 para aproximação com o Brasil.
No Brasil, depois da unilateral alteração ortográfica verificada em Portugal em 1911, realizaram-se também alterações ortográficas no sentido da simplificação.
Maria Helena da Rocha Pereira veio chamar a nossa atenção na passada semana para “Acordo Ortográfico - Uma questão premente”, que pode ler no “Jornal de Letras, Artes e Ideias”, n.º 974, de 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2008, p.20.
É um texto informado e sábio no qual conclui que: «É altura de reflectir sobre a importância do número de países independentes que agora reconhecem como sua a Língua Portuguesa, totalizando cerca de 200 milhões de falantes, e de concordar que não são as diferenças de pronúncia ou mesmo vocabulares - que entre nós também se verificam - que devem impedir a uniformização da escrita».
Estão disponíveis na blogosfera textos fundamentais, recentemente editados por Vital Moreira aqui ou Rui Tavares aqui, que colocam muito bem a necessidade e a premência do Acordo Ortográfico.
Considero que o Acordo Ortográfico permitirá assegurar a unidade essencial da Língua Portuguesa, sem pôr em causa o seu permanente enriquecimento vocabular com o contributo dos seus falantes, mas prevenindo a sua fragmentação.
Esse facto permitirá o reforço da sua utilização nas instituições internacionais, bem como na Rede.
A simplificação ortográfica em que se traduz tornará mais fáceis os processos de alfabetização dos que aspiram hoje a utilizar a Língua Portuguesa em vários continentes.
O Governo e a Assembleia da República terão de assumir as suas responsabilidades na aprovação e na concretização do Acordo Ortográfico. Há um tempo para tudo. Não podemos manter indefinidamente em aberto a possibilidade de assegurar a unidade da Língua Portuguesa através de um Acordo Ortográfico. Se não formos parceiros seriamente empenhados neste processo, estaremos a comprometer o futuro da Língua Portuguesa.
A alteração verificada na titularidade do Ministério da Cultura contribuirá para acelerar o processo de ratificação do Acordo Ortográfico ou para o manter congelado?
São inúmeras as nossas necessidades culturais, mas a nossa prioridade cultural é a ratificação e concretização do Acordo Ortográfico.