Se a revista Xis não tivesse outros méritos, ficaria na história da novíssima literatura portuguesa dos princípios do século XXI, por ter revelado uma grande escritora, Faíza Hayat. Fui descobrindo entre surpreso e curioso as crónicas que tem vindo a publicar naquela revista, percebendo que não só eram informadas, cultas, reflectidas, sábias, mas que eram habitadas por uma inequívoca vocação literária.
Para quem sonha com uma pátria plural e cosmopolita é uma grande motivo de esperança ver emergir esta geração de novos portugueses. Já tive oportunidade num post anterior Portugal, País Plural aqui de falar de alguns criadores musicais desta geração. Mas esta geração de novos portugueses cosmopolitas está também presente na literatura. Não é por acaso que dois jornalistas tão atentos e cultos como Adelino Gomes e José Pedro Castanheira tenham convidado para prefaciar o seu excelente livro «Os Dias Loucos do PREC» o jovem escritor Gonçalo M. Tavares, nascido em Luanda, em 1970 .
Como português sinto que estes novos portugueses nos acrescentam e que contribuem para que possamos encarar com esperança as oportunidades que a globalização comporta. Vejamos o seu bilhete de identidade, segundo Faíza Hayat: “Portugueses globais, com um pé em Lisboa e outro em Luanda, em Goa ou em Maputo, aflige-nos menos a estreiteza das fronteiras. Ser português para eles é uma outra forma de continuarem a ser ultramarinos. Estão para além disso disponíveis para a festa e para o riso. Sabem dançar” (vide, «Os novos portugueses» Xis, 15 de Abril de 2006).
Faíza Hayat não é apenas uma excelente cronista, é também uma excelente escritora como o poderão comprovar todos os que lerem «O Evangelho Segundo a Serpente».
Faíza é uma alfacinha, filha de mãe portuguesa católica, e pai goês, muçulmano, que escreve num português ágil e enxuto “anotações para uma ficção autobiográfica”, que se lêem com a consciência de que estamos a assistir ao início de uma grande carreira literária e com a certeza que virá a escrever livros inesquecíveis. A leveza, a liberdade e a imaginação informada com que constrói este seu livro, lembrou-me aquela com que Almeida Garrett no século XIX escreveu esse livro, também singular, «Viagens na Minha Terra». Só que as viagens da Faíza têm um âmbito geográfico e cultural sem fronteiras, estendem-se por um vasto mundo que vai do bairro da Graça a Goa passando por Barcelona, por Berlim, pelo Cairo, por Moçambique, pelo Índico, pelo deserto, por espaços e lugares que provavelmente nunca visitaremos, como a aldeia de Balat no oásis de Dakhala. Através de toda essa busca há uma identidade que se questiona e interroga, a busca e a experiência fugaz do amor e a paixão do conhecimento. A metáfora da serpente está ligada à transgressão dos limites do conhecimento instituído que se procura através de textos em copta, de Evangelhos gnósticos, sem esquecer que, como refere uma das personagens, “Foi a serpente quem ofereceu aos homens o fruto da árvore do conhecimento e por causa disso eles foram expulsos do Paraíso…”.
Este livro foi construído, como nele próprio se diz, a partir de um conjunto de crónicas publicadas na revista Xis. É por isso um livro que talvez não seja um romance, o que não constitui nenhum pecado literário. Faíza está aí em boa companhia literária. Basta recordar o já referido livro de Almeida Garrett.
Esta construção deixou de fora, contudo um conjunto notável de crónicas, que mereciam ser recolhidas e publicadas como simples crónicas, como têm sido as de António Lobo Antunes. Os temas abordados são os mais diversos desde aspectos biográficos não incluídos neste livro, críticas do quotidiano, manifestações de racismo, a condição islâmica espartilhada entre o fundamentalismo e os preconceitos que tendem a discriminá-la. São crónicas inteligentes e bem escritas que deviam ser reunidas e publicadas. Fixem o nome Faíza Hayat é o nome de um promissora escritora portuguesa, um nome português.
PS. Na próxima quarta-feira, 3 de Maio, iniciam-se em Lisboa, as «Conferências de Maio 2006» do Centro de Reflexão Cristã (CRC), cujo programa podem consultar aqui. Para quem se bate pelo diálogo inter-religioso e intercultural, é motivo de esperança que personalidades de matriz católica, agnóstica, ismaili, judaica, muçulmana e presbiteriana se disponham a debater sem tabus, em quatro conferências questões que se prendem com “Imagem do Sagrado, Imagens do Mundo”. Os temas em debate abrangem: a representação do sagrado no mundo da imagem; património da fé e liberdade criadora, imagens do religioso na comunicação social; a liberdade religiosa num mundo plural. Vale a pena participar nestes debates.
domingo, abril 30, 2006
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