domingo, abril 30, 2006

FAÍZA HAYAT - O EVANGELHO SEGUNDO A SERPENTE

Se a revista Xis não tivesse outros méritos, ficaria na história da novíssima literatura portuguesa dos princípios do século XXI, por ter revelado uma grande escritora, Faíza Hayat. Fui descobrindo entre surpreso e curioso as crónicas que tem vindo a publicar naquela revista, percebendo que não só eram informadas, cultas, reflectidas, sábias, mas que eram habitadas por uma inequívoca vocação literária.
Para quem sonha com uma pátria plural e cosmopolita é uma grande motivo de esperança ver emergir esta geração de novos portugueses. Já tive oportunidade num post anterior Portugal, País Plural aqui de falar de alguns criadores musicais desta geração. Mas esta geração de novos portugueses cosmopolitas está também presente na literatura. Não é por acaso que dois jornalistas tão atentos e cultos como Adelino Gomes e José Pedro Castanheira tenham convidado para prefaciar o seu excelente livro «Os Dias Loucos do PREC» o jovem escritor Gonçalo M. Tavares, nascido em Luanda, em 1970 .
Como português sinto que estes novos portugueses nos acrescentam e que contribuem para que possamos encarar com esperança as oportunidades que a globalização comporta. Vejamos o seu bilhete de identidade, segundo Faíza Hayat: “Portugueses globais, com um pé em Lisboa e outro em Luanda, em Goa ou em Maputo, aflige-nos menos a estreiteza das fronteiras. Ser português para eles é uma outra forma de continuarem a ser ultramarinos. Estão para além disso disponíveis para a festa e para o riso. Sabem dançar” (vide, «Os novos portugueses» Xis, 15 de Abril de 2006).
Faíza Hayat não é apenas uma excelente cronista, é também uma excelente escritora como o poderão comprovar todos os que lerem «O Evangelho Segundo a Serpente».
Faíza é uma alfacinha, filha de mãe portuguesa católica, e pai goês, muçulmano, que escreve num português ágil e enxuto “anotações para uma ficção autobiográfica”, que se lêem com a consciência de que estamos a assistir ao início de uma grande carreira literária e com a certeza que virá a escrever livros inesquecíveis. A leveza, a liberdade e a imaginação informada com que constrói este seu livro, lembrou-me aquela com que Almeida Garrett no século XIX escreveu esse livro, também singular, «Viagens na Minha Terra». Só que as viagens da Faíza têm um âmbito geográfico e cultural sem fronteiras, estendem-se por um vasto mundo que vai do bairro da Graça a Goa passando por Barcelona, por Berlim, pelo Cairo, por Moçambique, pelo Índico, pelo deserto, por espaços e lugares que provavelmente nunca visitaremos, como a aldeia de Balat no oásis de Dakhala. Através de toda essa busca há uma identidade que se questiona e interroga, a busca e a experiência fugaz do amor e a paixão do conhecimento. A metáfora da serpente está ligada à transgressão dos limites do conhecimento instituído que se procura através de textos em copta, de Evangelhos gnósticos, sem esquecer que, como refere uma das personagens, “Foi a serpente quem ofereceu aos homens o fruto da árvore do conhecimento e por causa disso eles foram expulsos do Paraíso…”.
Este livro foi construído, como nele próprio se diz, a partir de um conjunto de crónicas publicadas na revista Xis. É por isso um livro que talvez não seja um romance, o que não constitui nenhum pecado literário. Faíza está aí em boa companhia literária. Basta recordar o já referido livro de Almeida Garrett.
Esta construção deixou de fora, contudo um conjunto notável de crónicas, que mereciam ser recolhidas e publicadas como simples crónicas, como têm sido as de António Lobo Antunes. Os temas abordados são os mais diversos desde aspectos biográficos não incluídos neste livro, críticas do quotidiano, manifestações de racismo, a condição islâmica espartilhada entre o fundamentalismo e os preconceitos que tendem a discriminá-la. São crónicas inteligentes e bem escritas que deviam ser reunidas e publicadas. Fixem o nome Faíza Hayat é o nome de um promissora escritora portuguesa, um nome português.

PS. Na próxima quarta-feira, 3 de Maio, iniciam-se em Lisboa, as «Conferências de Maio 2006» do Centro de Reflexão Cristã (CRC), cujo programa podem consultar aqui. Para quem se bate pelo diálogo inter-religioso e intercultural, é motivo de esperança que personalidades de matriz católica, agnóstica, ismaili, judaica, muçulmana e presbiteriana se disponham a debater sem tabus, em quatro conferências questões que se prendem com “Imagem do Sagrado, Imagens do Mundo”. Os temas em debate abrangem: a representação do sagrado no mundo da imagem; património da fé e liberdade criadora, imagens do religioso na comunicação social; a liberdade religiosa num mundo plural. Vale a pena participar nestes debates.

terça-feira, abril 25, 2006

OS 33 ANOS DO PARTIDO SOCIALISTA

No passado dia 19 de Abril comemorou-se o 33º aniversário do Partido Socialista.
Na sua forma actual o partido é herdeiro e representante do grande movimento social e político, que a partir do século XIX conduziu a luta por uma sociedade mais justa e solidária. Inscrevem-se nesse movimento, que atravessou várias crises, mas esteve sempre presente na sociedade portuguesa, personalidades como Antero de Quental, José Fontana ou António Sérgio, ou mais recentemente, para referir apenas alguns dos fundadores do PS já falecidos, Francisco Ramos da Costa, Francisco Salgado Zenha, Manuel Tito de Morais.
Ao participar, como fundador, no jantar organizado para comemorar este aniversário, e ao ouvir as intervenções nele proferidas por Jaime Gama, em representação dos fundadores, pelo Presidente Almeida Santos e pelo Secretário-Geral José Sócrates, não pude deixar de pensar não só nas lutas já travadas, mas também interrogar-me sobre o futuro e em aspectos que contribuíram para enraizar o Partido Socialista na sociedade portuguesa.
O Partido Socialista tem sido um partido sempre capaz de assumir a verdade sobre o seu passado e de estar permanentemente aberto a discutir o seu contributo para a sociedade portuguesa. Corolário disso é o facto de não estar permanentemente a inventar o seu passado, os seus fundadores são conhecidos, não mudam com as conjunturas partidárias e, por outro lado, não há uma história oficial.
Um outro ponto que me apraz sublinhar é o facto da criação e desenvolvimento do Partido Socialista ter sido possível porque esteve sempre aberto à convergência de todos os que se batem pelo socialismo democrático. O socialismo democrático ganhou uma identidade forte e inconfundível sabendo fazer a síntese de inspirações diversas dos seus militantes, que no pós 25 de Abril iam desde o socialismo humanista laico e republicano, ao socialismo de inspiração marxista, passando pelo socialismo de inspiração cristã, como costumava então dizer Mário Soares.
Isto leva-me a outro ponto, o Partido Socialista com resultado de todo este processo, é um partido que não privilegia, como afirma solenemente a sua Declaração de Princípios, qualquer doutrina filosófica ou religiosa, reconhecendo aos seus membros inteira liberdade, em matéria de opção doutrinária e ética de vida. É um partido laico, constituído por pessoas livres que conscientes dos seus direitos e deveres, que detêm como cidadãos, aceitam oferecer ao partido, segundo as exigências e uma ética de responsabilidade o seu empenhamento político. A Declaração de Princípios sublinha, que em contrapartida, o partido obriga-se a respeitar a personalidade de cada membro, não lhe pedindo que se contradiga ou actue contra as suas íntimas convicções.
É também um partido aberto estatutariamente à participação como militantes de cidadãos estrangeiros legalmente residentes, naturais de Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e da União Europeia, tendo sido o primeiro partido português a assumi-lo abertamente nos seus estatutos. Numa próxima revisão dos estatutos terá de ir mais longe a abrir-se à participação de todos os estrangeiros legalmente residentes em Portugal que se identifiquem com a Declaração de Princípios.
Para os que desejarem confrontar-se com diversas leituras do que foi a actuação do Partido Socialista depois do 25 de Abril sugiro a leitura de livro “O Partido Socialista e a Democracia”, organizado por Vitalino Canas, edição Celta 2005. Os textos nele reunidos são discutíveis, deixam muitas questões por esclarecer, mas este é, sem dúvida, um contributo importante para a história do PS.
A Juventude Socialista, publicou também em 2004, um livro que merece ser lido “Juventude Socialista: 30 anos de Estórias de Portugal e do Mundo”, que teve a colaboração dos principais dirigentes da organização ao longo deste período.
Faz sentido evocar os 33 anos do Partido Socialista, no dia em que se comemora mais um aniversário do 25 de Abril, porque o Partido Socialista teve um papel essencial para a consolidação da revolução democrática e está intimamente ligado ao seu código genético.
Há dias para tudo, tem havido dias e outros haverá para criticar aspectos da actuação do Partido socialista, no passado e no presente, mas hoje é dia de recordar o contributo de milhares de militantes do PS para a construção do Estado de Direito democrático. Desses militantes, disse Sophia de Mello Breyner Andresen, no poema publicado no livro “O Nome das Coisas”, intitulado «Para Os Militantes do PS», “...Todos os que lutam e lutaram/Pr’a que não haja grades nem mordaça …”.

domingo, abril 16, 2006

IDENTIFICAÇÃO DE JESUS

A identidade de Jesus suscita actualmente novas reflexões e alimenta vivos debates. O recém divulgado Evangelho de Judas pela National Geographic Society vem acrescentar-se ao debate sobre as relações de Jesus e Madalena na sequência das questões a este respeito suscitadas pelo livro de Dan Brown “O Código Da Vinci”. Tudo isto teve o inquestionável aspecto positivo de fazer sair da sombra do esquecimento os Evangelhos Apócrifos e dar a conhecer a história esquecida e silenciada de correntes e grupos cristãos, que ficaram em minoria e foram apagados das histórias mais comummente divulgadas.
O aspecto negativo é que juntamente com tudo isto surgem em livros sem qualidade, as teses mais fantasistas. Mas tudo isto é natural em sociedades livres e democráticas. O que é importante é que este clima cultural nos ajuda a reler com olhos novos os quatro Evangelhos que fazem parte do cânon cristão e nos leva a procurar proceder de uma forma mais radical à identificação de Jesus. Este contexto permite também, por vezes, divulgar, alguma coisa da nova reflexão exegética e teológica sobre Jesus.
O Público de sexta-feira, 14 de Abril, merece uma leitura atenta por divulgar muito do actual questionamento sobre Jesus. É um trabalho notável organizado por António Marujo.
Permito-me referir, de novo, dois livros, que considero exemplares desta nova reflexão, “A Construção de Jesus” de José Tolentino de Mendonça, edição Assírio e Alvim e os “Escritos de São João” de Joaquim Carreira das Neves, edição Universidade Católica Portuguesa.
As opiniões de Joaquim Carreira da Neves sobre o Evangelho de Judas são, aliás, referidas nos interessantes artigos publicados na revista Actual do Expresso de 8 de Abril, organizados, oportunamente, por Mário Robalo.
Os artigos publicados no “Público”, referem algumas das teses inovadoras de José Tolentino de Mendonça, designadamente a de que Jesus foi crucificado pela forma como comia, muitas vezes, com publicanos e outros que eram considerados pecadores. Jesus sugere que se convidem para as refeições não os amigos, a família ou os vizinhos, mas antes «os pobres, os aleijados os coxos e os cegos». Essas experiências de «confronto» nas refeições com os fariseus traduzem a recusa de uma «religiosidade assente na exclusão», como refere José Tolentino de Mendonça, no Público
Estas questões levam-nos a ler com uma atenção vigilante as narrativas sobre a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus, que fazem parte da liturgia da Páscoa.
Todas aquelas palavras nos sacodem. Este ano, impressionou-me particularmente o realismo como é descrita a forma como Jesus se confrontou com a percepção da sua própria morte, a sua agonia em Getsémani, quando o evangelista Marcos refere: Tomando Consigo a Pedro, Tiago e João, começou a sentir pavor e a angustiar-Se. E disse-lhes «A Minha alma está numa tristeza de morte; ficai aqui e vigiai». Adiantando-Se um pouco, caiu por terra e orou para que, se fosse possível, passasse d’Ele aquela hora. E disse: «Abba», Pai, tudo Te é possível, afasta de Mim este cálice! Contudo, não se faça o que eu quero, mas o que Tu queres». (Mc, 14,33-36)
O facto de surgirem novas questões sobre a identidade do judeu Jesus, só é possível porque há liberdade de expressão e de crítica, o que nos permite perceber o que Jesus significa para cada um de nós. A resposta à pergunta sobre a identidade de Jesus tem de ser livre pessoal e consciente.

PS. Aproximando-nos de mais um aniversário do massacre dos cristãos-novos de Lisboa, ocorrido em 19 de Abril de 1506, não posso deixar de tomar partido sobre o debate em curso na blogosfera. A história de Lisboa e de Portugal tem momentos de que nos podemos orgulhar, mas também tem datas que evocam acontecimentos de uma imensa brutalidade, que nos envergonham.
Estou solidário com o que sobre este massacre escreveram Nuno Guerreiro, João Miguel Almeida, e Marco Oliveira.
A Inquisição tal como a Escravatura foram realidades que não podemos varrer da nossa memória
Há sim que purificar a memória. Recordo aqui as palavras proferidas por D. José Policarpo em 26 de Setembro de 2000, às portas da igreja de S. Domingos, à saída de uma Oração Ecuménica:
“Este centro histórico de Lisboa, onde fraternalmente nos abraçamos, foi no passado palco de violências intoleráveis contra o povo hebreu. Nem devemos esquecer, neste lugar, a triste sorte dos «cristãos novos» as pressões para se converterem, os motins, as suspeitas, as delações, os processos temíveis da Inquisição.
Como comunidade maioritária nesta cidade, há perto de mil anos, a Igreja Católica reconhece profundamente manchada a sua memória por esses gestos e palavras, tantas vezes praticados em seu nome, indignos da pessoa humana e do Evangelho que ela anuncia.
Em atitude de conversão pessoal e comunitária, quero retomar hoje, solenemente, perante Deus e diante de todos vós, a advertência do Concílio Vaticano II:
A Igreja Católica em Lisboa «reprova como contrária ao espírito de Cristo qualquer discriminação, ou qualquer perseguição feita por questão de raça ou de cor, de condição de vida ou de religião. E … roga ardentemente aos [seus fiéis] que … façam quanto deles depende para estarem em paz com todos (cf. Rom 12,18), de modo que sejam verdadeiramente filhos do Pai que está nos céus (cf. Mt 5,45)» (Nostra Aetate, 5)”
Iniciativas como a do Nuno Guerreiro só podem merecer apoio.
Penso que seria de assinalar, de uma forma duradoura, no Rossio não só os crimes cometidos contra os judeus portugueses, mas também as palavras expressas por D. José Policarpo.

domingo, abril 09, 2006

MÃES E PAIS CIDADANIAS IGUAIS

Na sequência de um debate promovido pelo Movimento Intervenção e Cidadania (MIC) foi lançada uma petição colectiva pelo alargamento do período de licença por paternidade.
Vale a pena determo-nos na abordagem inovadora que esta petição pressupõe. Constata-se que persiste a desigualdade entre a situação dos homens e das mulheres na actividade profissional e na vida familiar e que há que criar condições para estabelecer um maior equilíbrio. Tendo em conta a licença por maternidade e a licença por paternidade já previstas no Código do Trabalho o alargamento do período de licença por paternidade será um contributo para um avanço neste sentido.
Poderá perguntar-se porque se não propõe antes o aumento da licença por maternidade.
A resposta é, em meu entender, simples.
Como resultado das lutas sociais a trabalhadora tem direito a uma licença por maternidade de 120 dias consecutivos, 90 dos quais necessariamente a seguir ao parto, podendo os restantes ser gozados, total ou parcialmente, antes ou depois do parto. No caso de nascimentos múltiplos, o período de licença é acrescido de 30 dias por cada gemelar além do primeiro.
O pai tem direito a uma licença por paternidade de cinco dias úteis, seguidos ou interpolados, que são obrigatoriamente gozados no primeiro mês a seguir ao nascimento do filho.
Na prática sabemos que há muitas mulheres que por pressões profissionais são levadas a não gozar os direitos irrenunciáveis que a lei lhes concede, ou que abdicam da maternidade, e que outras são preteridas na admissão a favor de homens pelo facto das empresas pretenderem prevenir a possibilidade de virem a ser mães e gozarem da licença por maternidade.
Continua a ser muito difícil, ou melhor, têm-se tornado cada vez mais difícil conjugar maternidade e carreira profissional, apesar das medidas que têm sido tomadas para facilitar a conciliação da actividade profissional e da vida familiar.
Ora existe, por outro lado, cada vez mais a consciência, de que a tanto a maternidade como a paternidade são valores sociais eminentes e que quer a mãe quer o pai têm direito à protecção da sociedade e do Estado na sua insubstituível missão em relação aos filhos, com estabelece o art. 68.º da Constituição da República Portuguesa.
Uma forma de avançar na promoção da igualdade entre homens e mulheres tendo em conta as constatações atrás referidas será a alteração para 10 dias úteis do período de licença por paternidade previsto no n.º 1 do artigo 36.º do Código do Trabalho, a concretizar de modo progressivo entre 1 de Janeiro de 2007 e 1 de Janeiro de 2009, ano em que se completa uma década sobre o reconhecimento do direito individual e universal do pai trabalhador por conta de outrem à licença por paternidade.
Poderíamos dizer que isso corresponde a um direito legítimo do pai, mas que além disso corresponde à necessidade de uma presença maior do pai na vida familiar e junto dos filhos para que a mãe tenha possa ter uma presença mais activa e igualitária a nível profissional.
A partir deste ponto de partida está a circular uma petição para que a Assembleia da República se debruce sobre esta matéria e legisle neste sentido É uma forma de intervir como cidadãos e de influenciar a agenda política da Assembleia da República. Quem quiser ler o texto na íntegra da petição e subscrevê-la poderá consultar www.manuelalegre.com
É inegável que esta petição tem uma abordagem inovadora de uma questão que deve merecer a nossa atenção.
As dificuldades que são colocadas em Portugal, e na Europa em geral, às mulheres trabalhadoras para conciliar a maternidade com uma carreira profissional é uma questão não apenas das mulheres, mas de toda a sociedade, e é uma das causas da acentuada quebra demográfica que se verifica na Europa.
Há uma total contradição entre a apologia da família e as condições concretas existentes no mercado de trabalho. Esta petição é um contributo para contrariar esta situação intolerável.

domingo, abril 02, 2006

OS IMIGRANTES EM SITUAÇÃO IRREGULAR

A propósito da expulsão dos imigrantes portugueses do Canadá, os comentários tem oscilado entre a solidariedade, pura e simples, porque são portugueses e a justificação das razões de Estado do actual governo conservador daquele País, dizendo que nesta matéria os Estados são todos iguais, o que não é verdade. O mundo é, felizmente, composto de diferenças, Portugal não é igual ao Canadá nesta matéria. Quem o não sabe, há muito coisa que ignora.
Comecemos pelo princípio, o termo “imigração irregular” é normalmente utilizado para descrever uma série de fenómenos diferentes que envolvem pessoas que entram ou ficam num país do qual não são cidadãos, infringindo assim as leis nacionais, como refere o Relatório da Comissão Mundial Sobre As Migrações Internacionais, “As migrações num mundo interligado: Novas linhas de acção”, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian. No mesmo relatório refere-se que existe uma “controvérsia à volta da adequação destes conceitos, e concorda com o pressuposto de que um indivíduo não pode ser “irregular”ou “ilegal”, referindo-se, por isso, às pessoas em causa como “migrantes em situação irregular”. A referida Comissão na respectiva recomendação nº 15 afirma: “Os Estados devem resolver o problema dos imigrantes em situação irregular através do seu regresso ou regularização”.
Retenhamos duas ideias, a imigração irregular designa fenómenos diferentes, que acrescento são susceptíveis de ter avaliação diferenciada, e que podem ter também soluções diferentes. Para ser mais claro, nas controvérsias recentes sobre a “imigração irregular”estou com os liberais no Canadá e contra os conservadores e com os milhões de manifestantes nos Estados Unidos contra a nova política de imigração de George W. Bush.
Dito isto, devo acrescentar que não existe o direito a emigrar para este ou aquele Estado e que os Estados têm o direito de admitir ou não a entrada e permanência de cidadãos que não sejam seus nacionais e de os convidar a sair ou de os expulsar. Portugal todos os anos recusa entradas e expulsa imigrantes em situação irregular ou a quem tenha sido aplicada uma pena acessória de expulsão em processo penal.
Considero, além disso, positivo que no Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, os Estados continuem a manter o direito de definir quem admitem ou não no seu território.
Acontece que sendo o que acabei de referir factos incontroversos, há Estados, que estão a procurar avançar no respeito dos direitos humanos, mesmo dos imigrantes em situação irregular, como é o caso de Portugal, em que, inclusive na sua actual lei de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros, tão justamente criticada por ser restritiva, admite que há categorias de estrangeiros inexpulsáveis, quando estão em causa valores e direitos como a vida familiar, bem como estrangeiros que devem ter acesso a uma autorização de residência, com dispensa de visto e permite a regularização de menores nascidos em Portugal.
É um sinal de progresso, os Estados auto-limitarem-se em matéria de admissão e expulsão de estrangeiros. Em 1997 Patrick Weil referiu, como exemplo das limitações que as democracias liberais aceitaram “uma regra não escrita que se tornou um direito: quando um estrangeiro adquiriu por renovação sucessiva do seu título de estadia uma residência estável num Estado democrático, este não o pode constranger, mesmo se a conjuntura económica mudou, a tornar a partir contra a sua vontade.” (vide, Mission d’étude des legislations de la nationalité et de l’immmigratin, Paris, La documentation française).
A limitação do direito dos Estados de expulsarem cidadãos estrangeiros, mesmo que tenham cometido crimes tem vindo, também, a ser imposta aos Estados europeus por diversas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por respeito pelo disposto no artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Foi este artigo juntamente com os artigos 33.º e 36.º da Constituição da República Portuguesa, que esteve na origem da criação, primeiro na jurisprudência e depois na legislação portuguesa, das categorias de estrangeiros inexpulsáveis. (vide, Luís Nunes de Almeida e José Leitão,” Les Droits et Libertes des Étrangers en Situation Irreguliére”, Annuaire Internationalle de Justice Constitucionelle, Economica, Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 1998, pp.303-304).
Outro princípio não escrito, que muitos Estados europeus têm tido em conta na sua legislação, é por exemplo, que a existência de uma presença prolongada no território de um Estado, acompanhada, ou não, do cumprimento de obrigações de contribuir para os sistemas fiscal ou da segurança social, e a ausência de cadastro criminal, possa possibilitar, em certas situações, a regularização dos imigrantes que preenchem esses requisitos.
Existem assim, boas razões e bons princípios jurídicos, que justificam uma intervenção do Governo português e, designadamente do Ministro Freitas do Amaral, em defesa dos seus cidadãos, cujas situações tanto quanto se percebe pelas informações veiculadas pela comunicação social são diversas e devem merecer uma análise diferenciada.