A atribuição recente do Prémio Pessoa 2005 a Luís Miguel Cintra, actor e encenador, é motivo de alegria para todos os que estão empenhados na permanente recriação da cultura portuguesa. Escrevo, ouvindo-o em pano de fundo recitar poemas do Ruy Belo, versos como: “Neste país sem olhos e sem boca/ hábito dos rios castanheiros costumados/ país palavra húmida e translúcida/ palavra tensa com certa espessura (pátria de palavra apenas tem a superfície)”. Recordo-o numa evocação de Ruy Belo, no Teatro da Cornucópia, que partilhou se a memória não me atraiçoa, com o saudoso Nuno Bragança. Imagino como seria bom ouvi-lo dizer textos de prosa, escolhidos dos romances de Nuno Bragança. Aqui fica a sugestão.
O júri destacou na atribuição do prémio, justamente, “mais de três décadas de um percurso exemplar, tanto como actor, como nos planos da dramaturgia e encenação”ou o “rigor de fixação/ou tradução de textos ao aparato crítico dos programas”. Todos os que acompanharam algumas das produções teatrais do Teatro da Cornucópia têm presente a qualidade e a profundidade da informação sobre os autores representados.
É uma coincidência feliz, que este prémio lhe tenha sido atribuído no mesmo ano em que Harold Pinter recebeu o Prémio Nobel de Literatura.
É bom que o Prémio Pessoa nos dê todos os anos razões de esperança, chamando a nossa atenção para alguns daqueles que de forma rigorosa e empenhada nos alargam os horizontes do saber, do conhecer e do sentir. Todos os premiados sem excepção, de José Mattoso a Joaquim Gomes Canotilho, passando por Menez, Manuel Alegre, João Bénard da Costa, António ou Hanna Damásio, se distinguiram por uma intervenção particularmente relevante e inovadora na vida artística, literária ou científica do país, como exige o Regulamento.
Como qualquer pessoa ou instituição pode enviar propostas de candidatura ao prémio, quero com antecedência deixar uma proposta de candidatura para o Prémio Pessoa de 2006, o Professor Joaquim Carreira das Neves, jubilado em 2005, altura em que proferiu uma notável Lição. Ele é um notável estudioso dos textos bíblicos, que procurou estudar nas línguas originais, cotejando diversas versões do mesmo texto, procurando sujeitá-los a uma hermenêutica crítica, libertando-os de uma qualquer apropriação fundamentalista e que ignore o contexto em que foi produzido. É um homem de um enorme saber, que estudou nas melhores escolas e que ensinou na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, mas também no Instituto Bíblico da Flagelação (Jerusalém) e na Universidade Nova de Lisboa (Instituto da História do Próximo e Médio Oriente). Destacaria da sua vasta produção científica, dispersa por artigos de especialidade teológica, ecuménica e bíblica, livros como: Jesus Cristo -História e Fé (Braga, 1989); As Novas Seitas Cristãs e A Bíblia (Lisboa, 1998), Evangelhos Sinópticos (Lisboa, 2002); Escritos de São João (2004). Quem ler este seu último livro não pode deixar de ficar fascinado com o conhecimento profundo dos mais modernos métodos hermenêuticos, a vastidão e actualidade da bibliografia, mas acima de tudo a procura livre e rigorosa da verdade.
Penso que seria de inteira justiça premiar Joaquim Carreira das Neves com o Prémio Pessoa pela vastidão e qualidade do seu trabalho científico. Não há, em meu entender, razão para que aqueles que estudam com rigor os textos matriciais da cultura, sejam eles a Bíblia Judaica ou a Cristã, o Alcorão ou os textos do Hinduísmo, ou do Budismo não vejam reconhecido o mérito científico e o contributo que dão para a cultura comum, libertando os textos de apropriações fundamentalistas.
Luís Miguel Cintra, como os restantes homens e mulheres que já receberam o Prémio Pessoa, ou como Joaquim Carreira das Neves, alimentam a nossa esperança, não apenas pelo seu saber, mas também pela sua sabedoria e pelo seu contributo, através da criação cultural, para a justiça e a paz.
domingo, janeiro 01, 2006
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