domingo, julho 16, 2006

DIÁRIOS DA BÓSNIA

A multiplicação da informação televisiva às horas de jantar sobre as tragédias do mundo faz-nos perder a capacidade de reagir, de nos perguntarmos sobre o que é possível fazer. Em tudo isso pode haver uma parte da reacção que é saudável, se não for sinónimo de indiferença, temos de enfrentar as dificuldades do dia a dia com coragem, fazer o que podemos fazer e não há nada de mais estéril que invocar as tragédias do mundo para não cumprir os deveres de solidariedade mais próximos e elementares. Mas também há muitas vezes dois aspectos muito negativos na passividade com que recebemos a informação, um deles é a distância. Tudo o que se não passa no nosso país, na Europa ou no Mundo de Língua Portuguesa, passa-se longe. Como, há muito escreveu Eça de Queirós, no seu livro, “O Mandarim” o que se passa longe não nos afecta da mesma forma do que o que se passa perto. Existe outro aspecto negativo na nossa reacção habituamo-nos, ora como afirmou Charles Peguy, não há nada pior que uma consciência “habituada”.
O filme de Joaquim Sapinho “Diários da Bósnia”, que se estreou recentemente, é por tudo isto um murro no estômago, que nos obriga a pensar e a ver que a Bósnia, é aqui perto, tem a ver connosco como o têm os bombardeamentos em Gaza, Israel ou no Sul do Líbano.
O filme assume o registo de apontamentos de um diário, conjuga imagens filmadas em 1996 e em 1998, e dá-nos a ver um país devastado em que aldeias e cidades foram completamente dizimadas, tendo ficado muitas vezes apenas restos de paredes, e perguntamo-nos como é que pessoas vizinhas, amigas e felizes, que comiam e riam juntas em velhas fotografias, se massacraram daquela forma.
Vemos Sarajevo onde os sons das preces islâmicas se cruzavam com os sinos cristãos ortodoxos, depois de anos de cerco sérvio, reduzida aos sons vindos das mesquitas. Vemos gente que experimentou um imenso sofrimento, que se fecha e da qual é difícil o realizador conseguir pôr a falar perante as câmaras como aconteceu com aqueles fieis ortodoxos que persistem em viver como cristãos em Sarajevo. Há imagens muito fortes e belas como as imagens de culto islâmico por parte de mulheres. Já as imagens de culto cristão ortodoxo precisavam de ter sido bem contextualizadas. A parte do texto que o celebrante recita não são a expressão da oração dos crentes como se poderia deduzir, mas sim as palavras de um fariseu numa parábola do Evangelho. Se não se perceber isto poderá ter-se uma imagem deformada da espiritualidade dos cristãos ortodoxos.
O filme é por vezes como uma pintura, como acontece com a filmagem do interior destruído do Museu de História Natural.
Joaquim Sapinho dá-nos elementos essenciais para nos fazer pensar sobre o porquê de tanta destruição, mas sentimos que há muitas coisas que gostaríamos de perceber, por exemplo, as relações entre croatas e muçulmanos, que se aliaram a partir de certa altura contra os sérvios. A ausência dos croatas tem razão de ser, já que as áreas da Bósnia filmadas são aquelas em que o conflito central foi entre sérvios e muçulmanos, mas as interrogações permanecem.
Ficamos também com a sensação de que vai ser um longo protectorado, em que a paz é assegurada pela presença de forças das Nações Unidas, como os soldados portugueses. Percebemos melhor com este filme a importância desta presença dos soldados portugueses e o dever que temos em participar neste tipo de missões. Se há alguma coisa que este filme nos obriga a tomar consciência, é que não podemos ignorar o massacre e o imenso sofrimento de outros povos. Pertencemos a uma única humanidade e temos que nos empenharmos em diminuir o sofrimento inútil e contribuir para um mundo mais pacífico em que a dignidade humana seja respeitada. Tudo tem a ver connosco.
Vale por isso a pena ver os “Diários da Bósnia” de Joaquim Sapinho. Gostaríamos, um dia, de ver a sequência. Temos esperança que alguma coisa tenha mudado para melhor e perguntamo-nos em que se tornaram as crianças que vemos no filme.

P.S. 1 - A morte de cinco sapadores chilenos e de um bombeiro português em Famalicão da Serra (Guarda) não pode ficar sem registo e sem que aqui a todos preste a minha comovida homenagem.
Sobre os incêndios ocorridos no ano passado e as questões políticas de prevenção e de com bate aos incêndios sugiro que consultem aqui.
A aldeia de onde era originário o jovem bombeiro português, Sérgio José Neto Bica Rocha, acompanhou o seu funeral com emoção. Pouco a pouco a morte dos cinco sapadores chilenos foi se perdendo no voracidade informativa. Temos que dizer que os não esquecemos, como não esquecemos o jovem bombeiro português. Lamentamos não ter visto os seus nomes na imprensa, são apenas cinco sapadores chilenos. Muitas vezes só quando há uma tragédia nas obras ou num desastre natural, neste caso num incêndio, nos damos conta da presença discreta, mas generosa e eficaz de imigrantes que lutam ao nosso lado para melhorar a qualidade de vida da sociedade portuguesa.

P.S. 2 - Já tínhamos editado o nosso post anterior quando lemos a notícia da morte do padre José Vieira Marques, com 72 anos, que, foi um divulgador apaixonado do cinema, entre outras actividades foi o responsável pela criação e direcção do Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz.
Conheci José Vieira Marques, quando era militante da JUC (Juventude Universitária Católica) e posteriormente dirigente do CRC (Centro de Reflexão Cristã) e estou-lhe grato por nos ter ajudado a aprender a analisar filmes e por nos ter transmitido a paixão pelo cinema. Não esqueço o seminário sobre o cinema de Ingmar Bergman que organizou e debates sobre filmes que nunca pude esquecer.
José Vieira Marques era um homem bom, generoso, acolhedor e discreto. A sua paixão pela divulgação do cinema como forma de conhecimento, o facto de ter vivido numa linha de risco, a falta de palavra ou de solidariedade na hora certa, tudo isto deve ter-lhe trazido dificuldades na sua inserção eclesial. Pelo que conheci dele lembrar-me-ei dele, como um santo que nunca será canonizado, para usar o título de um livro do grande teólogo espanhol José Maria González Ruiz, falecido no princípio deste ano.

3 comentários:

José Leitão disse...

O comentário anterior nada tem a ver, como é evidente, com o meu post e a sua inserção é totalmente desadequada.
Não posso deixar de reagir dizendo o que penso sobre esta questão.Seria injusto prejudicar alunos de Química e de Física, que se viram confrontados com situações de desigualdade.
Considero que a possibilidade concedida a estes alunos de repetirem o teste, a título excepcional, foi por isso um acto corajoso da Ministra Maria de Lurdes Rodrigues. Se nada tivesse feito e tivesse permitido o sacrifício desses jovens não teria sido censurada com a agressividade com que o está a ser, nem alvo de insinuações e calúnias. São processos que rejeito na luta política, quem quer que seja o alvo.
Considero também, como jurista, que o despacho que o permitiu não viola o princípio da iqualdade ao tratar diferentemente o que é diferente.

Teresa Frazão disse...

Na verdade, imprecindível ver o filme «Diários da Bósnia».
Imprecindível vê-lo, para ainda que tão ao de leve, «estar mais por lá», na tentativa ténue de entender a dor.
Imprecindível ver o que tanto fere.
Realço, ao que tão bem disseste, que o filme começa com imagens longas num cemitério. E assim também termina.
Sonhamos, desejamos ver-lhe a continuação. Uma esperança nascida na vida que resta.
Acrescento um pouco fora de contexto, mas a propósito e urgente que o papa Bento XVI propõe para hoje um dia de penitência e de oração pela paz.

jomanros disse...

Nestes dias loucos, de guerra assassina de crianças,tudo o que seja pela paz é importante, é mesmo urgente. "Diários da Bósnia" é um filme importante- É um grande grito contra a guerra e importante para que faça acordar muita gente, pois,torna-se urgente clamar para parar os bombardeamentos cobardes contra populações indefesas. Não há justificação para que Israel continue a massacrar e a invadir o país soberano vizinho. Estão a ficar piores que os alemães quando invadiram a Polónia - temos que fazer parar estes criminosos. Hoje em dia, com a evolução tecnológica, a guerra faz-se sentado e isso é um sinal horrível dos nossos tempos. Com o dominio tecnológico, a precisão de ataques sangrentos é obtida com o clique numa tecla ou num rato. Começo a dar razão a um grande biologista que foi meu professor no Passos Manuel, chamado Correia de Melo. Este visionário afirmava e demonstrava que o "homo erectus" iria muito brevemente dar lugar ao "homem sempre sentado sem pernas"!Reparem bem nas nossas crianças a brincar com "play stations"...