domingo, abril 11, 2010

O MIÚDO QUE PREGAVA PREGOS NUMA TÁBUA DE MANUEL ALEGRE

Esta novela de Manuel Alegre, pode ler-se como uma viagem, através de diversos fragmentos que acorrem à memória, ou dito de outra forma, como uma pergunta pela identidade. Nas palavras de Manuel Alegre: «a história é uma pergunta sem resposta, e as personagens são as metamorfoses por que passa o miúdo que fazia essa pergunta sentado num parapeito a olhar as águas que vão por sobre a ponte do rio Águeda».
O prazer da escrita que este livro nos proporciona, tem a ver com a escrita ágil, depurada, precisa, mas também com a forma como a pergunta sobre a identidade se vai estruturando, não através de uma resposta, mas apenas através de actos, através dos quais o miúdo que pregava pregos se vai construindo na sua singularidade. O miúdo que pregava pregos numa tábua, vai ser também a do que engoliu os comprimidos do avô, o que deslizava na água como se contasse as sílabas pelos dedos, o que falhou o tiro na seixa e deixou o seu pelotão com estômago a dar horas, o que ficou com os ouvidos a chiar depois da bazucada entre Nambuangongo e Quipedro, o que sentiu o bafo da terra no rebordo da cratera do vulcão Santiago na Nicarágua, o que não deixaram adormecer quando o ritmo se perdeu dentro dele, o que esteve fechado numa cela da prisão da PIDE em Luanda. De muitos fragmentos é feita uma vida, ou como diz Manuel Alegre, «Vida de tantas vidas, na tão curta vida».
Este livro pode ser lido à luz das artes poéticas, que escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen, através das quais perseguia o real, buscava uma relação justa com as pessoas e as coisas. O miúdo que pregava pregos numa tábua apreende cedo a indignar-se com a injustiça, quando vê o médico amigo do avô ser arrastado por uns sujeitos de gabardina.
Este livro fala de uma viagem singular, mas é um livro, de que o autor disse «- Está muita gente a escrever comigo». Manuel Alegre insere-se numa genealogia poética. Sophia e Miguel Torga fazem parte da sua família poética, mas também João Roiz Castelo Branco, Sá de Miranda, Luís de Camões, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro. Todos eles fazem parte não apenas do código genético da poesia de língua portuguesa, mas também do seu cânone.
É um livro habitado pelos sons e pela música, pelo fado, pelo alarido e alarme dos sinos, pelo trilo no Verão, pelas cigarras, pelo trinado do rouxinol, do melro, da toutinegra, do pintarroxo, do pisco, pelo Concerto n.º 2 de Rachmaninov, pela Polonaise de Chopin, a Rapsódia Húngara n.º 2 de Listz, pelo próprio hino Nacional, pelas músicas brejeiras de A Saia da Carolina ou Ó Rosa Arredonda a Saia, o Concerto n.º 5 de Beethoven, Mozart, Bach, Vivaldi ou Amália.
Comecei por dizer nesta leitura pessoal deste livro, que deve ser confrontada e completada com o que disse a Prof.ª Doutora Paula Morão aqui ou pelo próprio Manuel Alegre aqui, que esta novela pode ser lida como uma pergunta pela identidade. Talvez se possa dizer que ao longo do livro há uma única pergunta, que nome tinha o miúdo de que nos fala o livro e que fala no livro.
Não é apenas Sophia no seu quarto de hospital que responde “Que nome tinha” completando o seu poema «Ia e vinha / E a cada coisa perguntava».
Que nome tinha é a mais radical questão que se pode colocar quando, como diz o autor, não se sabe sequer «quem é quem».
Este livro traz-nos uma certeza, a terra continua a tremer dentro do miúdo que pregava pregos numa tábua, o pulsar do mundo bate no coração de um homem, há um livro por acabar para o miúdo que pregava pregos numa tábua. Que esse livro em aberto continue a ser escrito por Manuel Alegre, mas que haja cada vez mais gente a escrevê-lo com ele, transformando-se num rio caudaloso, mas tranquilo, que invade com as suas canções as praças do meu País.

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