domingo, fevereiro 25, 2007

BABEL OU OS MUROS EVITÁVEIS ENTRE O GÉNERO HUMANO

O filme “Babel” de Alejandro González-Iñárritu surpreendeu-me e deixou marcas profundas na minha sensibilidade. Devo dizer que não tinha expectativa especial relativamente a ele e por isso apenas o vi na semana passada.
O que desde logo me agarrou foi o olhar a partir de vários ângulos para pedaços da nossa condição humana contemporânea, foi dar-nos a ver em paralelo várias estórias, situadas em contextos culturais e sociais muito diferentes - Estados Unidos, México, Marrocos, Japão e faladas em francês, inglês, espanhol, japonês e árabe.
Progressivamente as várias estórias mostram os nexos que as ligam e que na sua diversidade se inserem na trama comum da nossa história. Não deixa de ser simbólico, e creio que carregado de alguma ironia, que o que as une seja a espingarda de caça que um rico caçador japonês deu, como prova de amizade, a um guia marroquino e que este vendeu a um vizinho.
Devo confessar que as dimensões políticas presentes no filme e que podem ser discutidas, não são para mim o mais importante.
Considero a política um instrumento para tornar possível, a liberdade de desabrochar a vida que todos trazem dentro de si, de concretizar o direito à felicidade.
O que me interessa no filme é o que reforça a nossa consciência metapolítica de uma comum pertença à humanidade. É a capacidade para nos dar a ver o que de mesmo se esconde no que é diferente. Apesar da metáfora bíblica de Babel, percebemos que “a descoberta da alteridade é a de uma relação não de uma barreira”, como escreveu há muito, Claude Lévi-Strauss.
Impressionaram-me positivamente no filme as boas representações de Brad Pitt e Cate Blanchet, mas devo confessar que considero excelentes as representações de Adriana Barraza, no papel de empregada doméstica mexicana, da jovem japonesa e dos jovens irmãos marroquinos, particularmente do mais novo, cujos nomes gostaria de poder mencionar aqui.
O mesmo e o diferente unem o jovem marroquino, que descobre a sua sexualidade. e a jovem japonesa, que vive dolorosamente a sua solidão emocional, agravada pelo preconceito de que é vítima por ser surda-muda. Estão presentes na solidariedade viva com que a turista americana é ajudada na aldeia marroquina, onde fica a aguardar a vinda de auxílio americano. Estão também presentes na forma como as crianças americanas são recebidas na festa de casamento mexicana e no laço de afecto que une a empregada doméstica mexicana às crianças que criou.
O filme fala-nos também dos muros e daí o recurso à metáfora de Babel. Os muros da desconfiança e do preconceito político que atrasam o socorro à americana ferida, os muros que existem entre vizinhos, México e Estados Unidos, os que impedem uma mexicana de regressar aos Estados Unidos onde trabalhava há 16 anos, os muros da discriminação e do preconceito que se erguem em torno da jovem japonesa, apesar de bela e rica, porque é surda-muda.
O filme deixa-nos muitas questões em aberto que se prendem com a súbita emergência do trágico na vida de cada um, como a bala que quase mata a turista americana, a forma impensada como dois jovens marroquinos, ao experimentarem uma arma que lhes foi dada para guardar um rebanho dos chacais, irão causar a morte de um deles.
O filme usa uma linguagem sóbria. Uma imagem que vale muitas palavras é a do regresso da empregada ao México depois de muitos anos de trabalho em situação irregular. Tudo o que tem cabe debaixo do braço. É uma das imagens com mais carga política deste filme.
Se há um objectivo politico que podemos fixar depois de ver este filme é lutar para regular a globalização de forma a eliminar os muros evitáveis que separam o género humano e nos impedem de ver que somos todos membros de uma única humanidade.

domingo, fevereiro 18, 2007

FLEXIGURANÇA - QUESTÕES PRÉVIAS

A flexigurança irá ser cada vez mais discutida nos próximos meses e não posso deixar de colocar algumas questões prévias ao seu debate.
Vivemos tempos de grandes desafios para os trabalhadores, em que é necessário tentar perceber o que são mudanças razoáveis tendo em conta as alterações da situação económica, social e cultural, quer a nível nacional, quer no quadro europeu e mundial, e que representa o aproveitamento desses processos para maior exploração e precarização das condições de trabalho.
A flexigurança é apresentada como uma solução mágica, importada da Dinamarca, com uma ligação a uma certa social-democracia “nórdica”, que seria uma alternativa ao liberalismo puro e duro e que permitiria articular de forma virtuosa flexibilidade e segurança. Naturalmente que o novo modelo abre as portas a maior flexibilidade nas contratações e despedimentos, mas promete maior apoio social no desemprego.
Temos de reconhecer que o ministro Vieira da Silva tem tido alguma prudência no tratamento desta matéria, chamando a atenção, designadamente, para as questões que coloca a sua “transferabilidade”, isto é, a determinação dos termos e condições em que tais estratégias podem funcionar em países com características culturais e com sistemas de emprego distintos dos países nórdicos.
Para justificar a introdução da flexigurança, entre nós, tem-se invocado a rigidez do mercado de trabalho e da legislação dos despedimentos.
Convém, contudo, ser mais rigoroso. A única área em que o despedimento é rodeado de maiores garantias do que em outros países europeus é a do despedimento individual com invocação de justa causa.
Os trabalhadores estão mais desprotegidos do que em muitos outros países europeus no que se refere aos despedimentos ditos por causas objectivas, como os justificados com a invocação de extinção dos postos de trabalho ou por despedimento colectivo e verificam-se muitos atropelos na forma como a legislação é aplicada pelas entidades patronais sem uma pronta intervenção da administração do trabalho, por falta de recursos humanos.
O mercado de trabalho português é, na prática, um dos mais flexíveis da Europa. Nele coexistem elevado grau de informalidade nas relações laborais em vários sectores de actividade, com crescente precarização do trabalho, particularmente, dos trabalhadores mais jovens, bem como, formas imaginativas de contornar os direitos dos trabalhadores por parte de muitas entidades empregadoras.
Para discutir a flexigurança é preciso ter também presente que o que se está a propor é uma nova forma da Segurança Social financiar a reconversão das empresas.
Nesta matéria é necessário fazer contas e dizer quanto custou e quanto continua a custar à Segurança Social o “emagrecimento” das empresas nos últimos anos, quantos milhões de euros estão a ser pagos e têm sido pagos a título de subsídio de desemprego para facilitar a cessação dos contratos de trabalho “por mútuo acordo, motivado pela necessidade de reduzir postos de trabalho”.
Não sabemos também quantos milhões de euros deixaram de entrar em contribuições para a Segurança Social com as reformas antecipadas na sequência do esgotamento do período de concessão de subsídio de desemprego.
Tudo isto teve grandes vantagens económicas para as empresas e foi muito importante para atenuar os prejuízos sofridos pelos trabalhadores abrangidos. O custo destas medidas foi, contudo, mais elevado para Segurança Social do que o montante das importâncias pagas pelo Fundo de Garantia Salarial para custear o pagamento das importâncias em dívida aos trabalhadores no caso de insolvência dos empregadores.
É justo dizer que esta legislação foi alterada pelo actual Governo que instituiu novas regras em matéria de subsídio de desemprego.
Não se devem adoptar novas soluções que favoreçam a rentabilidade das empresas à custa dor recursos afectos à Segurança Social, sem prejuízo de admitir que devemos estar abertos a considerar novas possibilidades de articulação entre o económico e o social.
Vivemos tempos de mudança em que as empresas e sobretudo os grupos de empresas têm uma grande plasticidade e recorrem à autonomização de algumas das suas actividades criando novas empresas e mudando as sedes dessas novas empresas para Espanha. Entre as causas dessas mudanças de sede estão razões fiscais, designadamente, o IVA mais elevado em Portugal e não a rigidez da legislação laboral.
É positivo que as centrais sindicais portuguesas, UGT e CGTP estejam decididas a tomar uma atitude proactiva nesta matéria e tenham constituído uma comissão conjunta para acompanhar de perto os assuntos considerados prioritários da Presidência Portuguesa da União Europeia e queiram discutir temas, como emprego, relações de trabalho e flexigurança.
Estaremos atentos e não deixaremos de dar o nosso contributo para estes debates.
O que está em causa não são apenas direitos ou garantias dos trabalhadores, são questões de cidadania.

domingo, fevereiro 11, 2007

ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA - UM ENCONTRO MARCANTE

António Alçada Baptista é uma referência marcante na minha evolução espiritual, cultural e política, apesar das diferenças de percurso. Posso dizer que a minha vida teria sido diferente se não fosse a sua intervenção. Estou certo que para outros homens e mulheres ele foi também um encontro marcante nas suas vidas, mesmo para muitos que o não conhecem pessoalmente.
Alçada Baptista fez recentemente oitenta anos e foi editado um livro de homenagem, intitulado, «ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA Tempo Afectuoso - Homenagem ao Escritor e Amigo de Todos Nós» que merece ser lido e debatido. É uma iniciativa da sua actual editora, a Presença, em colaboração com o Centro Nacional e Cultura, no qual participaram inúmeros amigos entre os quais, Maria Helena Mira Mateus e Guilherme d’Oliveira Martins, que assinam o prefácio. Entre os quarenta e cinco amigos e amigas que colaboram nesta iniciativa contam-se: Alberto Vaz da Silva, Edgar Morin, Eduardo Lourenço, Fernando Pinto Amaral, João Bénard da Costa, Guilherme d’Oliveira Martins, Jorge Sampaio, Mário Soares, Pedro Roseta, Sidónio de Freitas Branco Paes, Pedro Tamen e Urbano Tavares Rodrigues.
Quando era ainda um jovem estudante do Liceu Nacional de Viseu foi para mim decisiva a leitura da revista «O Tempo e o Modo», de que Alçada foi criador e director. Esta revista alargou-me os horizontes e permitiu alimentar a minha dupla procura, por um lado, de uma Igreja renovada pelo Concílio Vaticano II, por outro lado, de uma esquerda que fosse ela própria inovadora e capaz de acolher os “militantes de origem cristã”, para parafrasear o título de um número especial da revista «Esprit».
Apesar dos vinte e quatro anos de idade que nos separam experimentei muito do mundo mental de que nos fala Alçada Baptista no seu primeiro livro da «Peregrinação Interior». Foi muito importante ter tido a possibilidade de ler vários livros do “Círculo de Humanismo Cristão” na descoberta de uma teologia viva que nos possibilita uma outra aproximação ao mistério e a Deus, editados pela sua Livraria Moraes. Lamentei toda a minha vida não ter comprado quando o vi, o livro «Força Para Amar» de Martin Luther King, que viria a ser apreendido e que nunca consegui encontrar até hoje.
Foi também com o “Círculo de Poesia” e com o “Circulo de Prosa” da Moraes, que descobri, por exemplo, a poesia de Sophia, designadamente, o «Livro VI» e «O Nome das Coisas», ou a prosa de Nuno Bragança de «A Noite e o Riso» e de «Directa».
Não falando já de pensadores como Mounier, Lebret, Maritain, Giorgio La Pira, Simone Weil, Adérito Sedas Nunes, Manuel Antunes e muitos outros.
Alçada Baptista teve também influência na minha vida política, de forma indirecta. Quando era estudante de Coimbra e ele foi candidato pela Oposição Democrática por Castelo Branco escrevi-lhe, manifestando o meu entusiasmo e pedindo o envio do manifesto que era um texto muito bem escrito e com linguagem inovadora. Alçada Baptista teve a gentileza de mo enviar.
Julgo que foi muito importante para a futura participação dos católicos na esquerda democrática e socialista o facto de Alçada Baptista e os seus companheiros terem convidado Mário Soares, Salgado Zenha e Jorge Sampaio a juntarem-se aos católicos que estiveram na origem de «O Tempo e o Modo».
Alçada Baptista é um notável memorialista, mas é também um novelista e um romancista de ideias. Livros como «Os Nós e os Laços», «O Riso de Deus» e «O Tecido do Outono» são romances de ideias desafiadores, que nos colocam não apenas perante reflexões sobre Deus, mas também perante novas representações das relações afectivas entre homens e mulheres, que questionam o amor e a amizade, que ainda não tiverem o tratamento crítico que merecem. Guilherme d’Oliveira Martins afirma no seu testemunho que o escritor se admira de nos tempos que correm não haver ainda uma “teologia da felicidade”. Creio que Alçada Baptista deu-nos com estes livros e as suas novelas contributos para a uma teologia da felicidade e do prazer, a construir, e que a melhor forma de prosseguir esta homenagem é continuarmos a lê-lo e a discuti-lo, qual quer que seja as respostas que entendamos dar às questões que coloca.

domingo, fevereiro 04, 2007

O MEU VOTO SIM NO REFERENDO SOBRE A IVG

Votarei sim no próximo referendo na esperança que o meu voto contribua para uma lei mais equilibrada em matéria de interrupção voluntária da gravidez.
Considero que devem ser criadas todas as condições para evitar e reduzir o mais possível o recurso ao aborto, mas entendo também que devo votar “sim” à despenalização proposta no referendo. Para além dos valores da defesa da vida ou da livre escolha, sou também sensível a outros valores como os da responsabilidade e da compaixão, que em sentido etimológico significa a capacidade de ser sensível ao sofrimento dos outros.
A vida intra-uterina constitui um bem constitucionalmente tutelado, e este reconhecimento é independente de concepções filosóficas ou religiosas sobre o início da vida humana, donde deriva a obrigação do Estado de a defender
Considero, como muitos outros que defendem o sim, que deveriam ser adoptadas medidas como a obrigatoriedade de uma prévia consulta de aconselhamento e o estabelecimento de um período entre a consulta e a intervenção abortiva para assegurar que a mulher tomou a decisão de forma livre, informada e não precipitada, evitando-se a interrupção da gravidez motivada por súbito desespero.
Seria muito positivo que os partidos que apoiam a despenalização assumissem antes do referendo o compromisso de prever estas medidas na futura lei. A sua ausência desprotegeria de forma desproporcionada a tutela da vida intra-uterina.
O que está em causa neste referendo não é “o direito ao aborto”, nem o ser “a favor do aborto”, mas o respeito pela consciência e pelo sentido de responsabilidade das mulheres que decidem interromper a gravidez até às dez semanas. A maioria dos abortos realizam-se em Portugal até às dez semanas e a lei penal tem-se revelado ineficaz para o evitar. A proibição contribui para o recurso ao aborto em situação ilegal, com consequências gravosas para a situação física e psíquica da mulher.
O aborto é motivo de conflito e sofrimento e é particularmente dramático para as mulheres mais pobres, mais jovens e mais excluídas, que são levadas a recorrer a ele sem condições de segurança por graves situações de carência económica ou por força dos preconceitos sociais. A penalização do aborto constitui um factor de maior sofrimento e de reforço da discriminação de que são vítimas na sociedade. Considero que a nossa intervenção cívica e política deve ter como um dos objectivos eliminar o sofrimento evitável e penso que a prevenção do aborto não exige a penalização dos que se verificam até às dez semanas. Confio na consciência bem informada e no sentido de responsabilidade das mulheres e dos cidadãos, em geral, para conseguir que o aborto seja raro.
Considero que é intolerável que muitas mulheres sejam levadas a abortar por força das difíceis condições económicas em que vivem ou por força dos preconceitos sociais que tendem a excluir mulheres que engravidam fora do casamento ou da união de facto.
São de louvar e apoiar todas as iniciativas da sociedade civil que se têm substituído à omissão do Estado nesta matéria.
Cabe também primeiro que tudo assegurar a educação sexual e o planeamento familiar a todos os cidadãos de forma a prevenir gravidezes indesejadas. Os diferentes governos têm-se demitido de fazer o que lhes compete nestas matérias, o que não pode continuar a acontecer.
Se o “sim” ganhar a minha agenda nesta matéria passa a ser a da promoção de condições sociais, culturais e legais para assegurar que todas as mulheres, independentemente da idade, condição social, origem ou fortuna, possam ter a liberdade de escolher ser mães e não sejam levadas a abortar sem o pretender.