domingo, outubro 30, 2005

OBRIGADO ROSA PARKS

Rosa Parks faleceu esta semana, a 24 de Outubro de 2005, com 92 anos. Ficou ligada a uma das maiores batalhas pelos direitos civis nos Estados Unidos e no Mundo. Rosa Parks era, na noite de 1 de Dezembro de 1955, uma costureira cansada que voltava para casa depois de um pesado dia de trabalho, e que não tinha nenhum lugar sentado na parte do autocarro reservado aos negros. Rosa Parks sentou-se num lugar em que era permitido sentar-se apenas se não houvesse um branco para o ocupar. Quando entraram mais brancos e lhe disseram para dar lugar a um branco, recusou-se e foi presa por violar a legislação em vigor.
A partir dessa desobediência e das reacções em cadeia que desencadeou, verificou-se uma dura batalha pelos direitos cívicos que conduziu à eliminação progressiva de todas as leis discriminatórias existentes nos Estados Unidos, cujo sucesso é ainda hoje inspirador para novas recusas em qualquer parte do Mundo.
Quando Rosa Parks desobedeceu, eu tinha cinco anos de idade, mas fui profundamente marcado pela luta pelos direitos cívicos nos Estados Unidos, pelas notícias que chegavam das lutas conduzidas por Martin Luther King.
Tenho dificuldade em reconstituir como fui sendo impregnado por essa informação, mas há para mim três ideias muito claras: sempre rejeitei com indignação a separação das pessoas em função da cor da pele; sempre entendi que a luta contra a discriminação racial deve ser travada por toda a gente e a minha simpatia ia para os movimentos em que negros e brancos, em conjunto, enfrentavam a segregação racial; sempre considerei que o segredo do sucesso e da eficácia da luta de Martin Luther King esteve na sua opção pela não-violência activa e pela desobediência civil na linha de Mahatma Gandhi.
Evocar hoje Rosa Parks é primeiro que tudo lembrar que cada um de nós tem mais poder e responsabilidade do que imagina e que, por vezes, temos o dever de desobedecer.
É também um apelo à cidadania em geral e, designadamente, em matéria de luta contra a discriminação racial e pela igualdade de oportunidades aqui em Portugal, como em qualquer parte do Mundo.
A luta contra a discriminação racial exige leis, mas elas não são suficientes. É preciso mudar as mentalidades, os nossos olhares sobre as pessoas e as situações, os nossos relacionamentos quotidianos.
É difícil ser negro e pobre entre nós. Existe o que alguns sociólogos designam como racismo subtil, para lá dos casos de racismo flagrante.Constroem-se muros e fronteiras, nalguns casos reais, noutros imaginários, sendo certo que o imaginário é sempre real para quem o toma como tal. Por outras palavras, há pessoas que não querem responder por telefone a uma oferta de emprego, ou a um anúncio de um aluguer de um quarto porque não estão dispostas a que lhes digam depois não quando perceberem que são negras. Quando se acumulam experiências de discriminação qualquer pessoa se torna mais sensível a tudo isso e muitas vezes sem paciência para mais uma experiência desagradável.
As universidades deviam ter um papel pedagógico nesta matéria, mas alguma coisa está errado no que ensinam quando se verifica que há faculdades em que até nas cantinas as pessoas comem separadas por nacionalidade ou pela cor da pele.
Temos que derrubar estes muros reais ou imaginários, ensinar como diz Mia Couto que “cada pessoa é uma humanidade individual” e que como Miguel Torga escreveu “o universal é o particular, menos os muros”.
Sobretudo temos de interiorizar que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Todas as formas abertas ou subtis de discriminação racial têm vítimas directas, mas são uma agressão a cada um de nós porque atentam contra um valor matricial, a nossa pertença comum à humanidade.
Há muito a fazer para construir uma sociedade que respeite os direitos humanos de todos os cidadãos, nacionais ou imigrantes,uma sociedade solidária em que todos participem equitativamente a todos os níveis. Por nos ter ensinado o poder que cada um de nós tem para construir uma sociedade em espírito de fraternidade, obrigado Rosa Parks.

domingo, outubro 23, 2005

CEUTA, MELILLA E A CONSCIÊNCIA CRISTÃ

O imenso sofrimento dos imigrantes em situação irregular e requerentes de asilo nas fronteiras de Ceuta e Melilla não têm provocado tomadas de posição de muitas entidades ou associações entre nós.
Naturalmente que há excepções e tomadas de posição que merecem ser tidas em conta. Destacaria duas tomadas de posição, o artigo da deputada europeia socialista no Parlamento Europeu, Ana Gomes, intitulado “Fortaleza Europa”, publicado no Courrier Internacional nº 28, de 14 a 20 de Outubro, e a tomada de posição da FORCIM (Fórum de Organizações Católicas para a Imigração) reunido em Lisboa, em 14 de Outubro de 2005. São textos com dois registos diferentes, o de Ana Gomes, uma corajosa e lúcida tomada de posição política, o da FORCIM, expressão de uma visão profética.
Para ser mais claro, a tomada de posição da FORCIM, embora pretenda agir sobre a realidade para a transformar, não assenta numa lógica política, coloca perante o juízo e a acção dos cidadãos em geral questões difíceis, que não podemos ignorar e para as quais nos temos de empenhar em construir soluções melhores.
O texto completo pode ser consultado em www.ecclesia.pt/ocpm, mas deixo registado aqui algumas das questões que coloca.
“…Recordamos que a Europa através das suas políticas migratórias securitárias e socialmente minimalistas tem vindo a tornar, desde há anos, o mediterrâneo num «mar de morte» e «deserto de suplício» para os imigrantes e refugiados da vizinha África. A Europa deve comprometer-se de forma arrojada e cooperante na resolução das causas que forçam o migrar dos irmãos e envidar esforços com vista ao respeito intransigente dos direitos humanos, do Direito Internacional consagrado em Convenções ratificadas. Mais do que reforçar fronteiras tornando-as «muros em escada» onde morrem imigrantes, há que reforçar a cooperação afro-europeia para erradicar a fome, pobreza, corrupção, comércio de armas e combater eficazmente as redes de traficantes de pessoas (…)
Situações destas continuarão a acontecer nos próximos meses, se a Europa, em contexto global de acelerada mundialização das migrações, não se responsabilizar concreta e «comunitariamente» pelo combate às raízes subjacentes à crescente irregularidade dos fluxos migratórios, através de uma urgente gestão da imigração legal, de forma ordenada, humana e participada bi- e multilateralmente”.
Estas afirmações não são a solução para as questões colocadas, são a exigência de que todos como cidadãos sejamos exigentes na avaliação das políticas nacionais e europeias, são um desafio a que os agentes políticos e cientistas sociais construam respostas que eliminem todo o sofrimento evitável de tantos milhares de seres humanos.
Gostaria a este propósito de deixar aqui expressa a minha solidariedade à forma como a Obra Católica Portuguesa de Migrações tem procurado despertar a consciência dos cristãos e dos cidadãos em geral em matéria de migrações. A consciência profética não pode ser hipotecada a qualquer sistema de troca de favores
Não deve surpreender ninguém a insatisfação que esta instituição tem manifestado perante todas as políticas de imigração que têm sido prosseguidas, incluindo as dos governos em que participei.
Como afirma o teólogo Johann Baptist Metz a história da redenção “…olha do ponto de vista dos vencidos e das vítimas para o teatro mundial da história…Para ela o potencial de sentido da história da liberdade não depende só dos sobreviventes, dos bem sucedidos, dos que escaparam.” (vide, A fé em história e sociedade: estudos para uma teologia fundamental prática, Edições Paulinas.1981).
É desejável que todos percebam o papel de cada um, aos partidos cabe ter políticas claras e alternativas em matéria de migrações, à(s) Igreja(s) ser um pólo profético, às associações de imigrantes, aos sindicatos, às associações anti-racistas ou de defesa dos direitos humanos serem porta voz dos seus associados e expressão da forma como vêem as políticas migratórias.
Isto não significa que não haja critérios que se venham a tornar comuns. Seria útil que entre eles se contassem a defesa dos direitos humanos de todos e a eliminação do sofrimento evitável através de melhores políticas em matéria de migrações.
No que se refere à vergonhosa situação de «crise humanitária» nas fronteiras europeias de Ceuta e Melilla, temos de afirmar com clareza que, pela sua parte, a FORCIM soube ser expressão da consciência cristã face à dramática e inaceitável situação de «crise humanitária» em que vivem milhares de imigrantes e requerentes de asilo da vizinha África.

domingo, outubro 16, 2005

CLICHÉS DISCRIMINATÓRIOS

Está a tornar-se frequente a utilização por agentes políticos e por profissionais da comunicação social de clichés discriminatórios, utilizando a palavra clichés não apenas no sentido de ideias feitas ou de estereótipos, mas numa acepção mais larga, que era a utilizada por Rodrigues Lapa, a qual cito de memória, com o significado de expressão sintética de uma ideia. Nos casos a que me refiro estes clichés veiculam ideias discriminatórias. Um dos casos actualmente mais frequentes é a utilização de frases como “Portugal parece um país do Terceiro Mundo”, “somos um país corrupto como o Terceiro Mundo”, mais genericamente tudo o que significa atraso, corrupção, incivilidade, populismo, é associado ao Terceiro Mundo. Tudo isto é feito algumas vezes por preguiça mental, mas qualquer que seja o motivo da sua utilização, reforça os preconceitos relativamente aos cidadãos que se supõem provenientes do dito Terceiro Mundo, uma parte dos quais são portugueses há várias gerações.
Estamos longe do período em que o Terceiro Mundo era esperança de um outro desenvolvimento, do não-alinhamento face aos Estados Unidos e à União Soviética. O que então se designava por Terceiro Mundo já não existe, como o comprova o facto de alguns dos Estados como a China ou a Índia serem o que se designa hoje por países emergentes.
Exemplo de mau gosto nesta matéria foi o programa de humor Contra-Informação da RTP sobre o resultado das eleições autárquicas, em que se ridicularizaram todos os aspectos mais lamentáveis destas eleições, apresentando-as como eleições realizadas no Terceiro Mundo, com paródias designadamente a África e à América Latina.
Os maus hábitos de utilizar clichés discriminatórios têm hoje outros alvos como “o negro”. Expressões pejorativas como “as listas negras” são utilizadas com frequência, como é o caso da recente “lista negra” das companhias de aviação aprovada ao nível da União Europeia. Ora nada justifica a utilização do adjectivo negro neste contexto, a não ser o preconceito implícito de que negro é sinónimo de negativo.
Encontra-se outro exemplo, no Expresso de ontem que titula “Uma semana negra” para referir a derrota eleitoral, a disputa Alegre-Soares e o OE que preocupam Sócrates. “Negra” aparece a qualificar a semana como sinónimo de tudo o que é negativo. Ora isto é intolerável, porque só tem um sentido criar um estereótipo negativo relativamente a quem é negro.
A utilização de clichés discriminatórios não é uma invenção recente. Os alvos é que mudam. Recordemos, por exemplo, expressões discriminatórias como “judiaria” ou “ciganagem”.
Outras expressões podem enunciar uma situação histórica passada, mas a sua utilização hoje tem o feito de transmitir estereótipos desvalorizadores. Expressões como “trabalhar que nem um mouro”, “o trabalho é bom para o preto”, “a fome é negra”, “a vida é negra”, dizem-nos muito sobre a dura vida de mouros e negros no passado e são marcas linguísticas que nos recordam o trabalho escravo. Mas, como já dizia a minha saudosa avó Maria do Carmo de Albuquerque, exprimindo o que aprendeu na sua aldeia de Parada, Carregal do Sal, há várias dezenas de anos, “a escravatura já acabou”. Utilizar hoje expressões como as citadas é colar os negros a uma imagem social de pobreza e exclusão.
A frequência da utilização de clichés discriminatórios por agentes políticos e por profissionais da comunicação social, exprime de uma forma dramática a baixa estima a que chegámos, a avaliação negativa, muitas vezes injustificadamente negativa que fazemos de nós e, sobretudo, de Portugal. Nós não nos comparamos com países com maior nível de desenvolvimento humano, não nos propomos convictamente alcançá-los de forma organizada e eficaz. Tememos baixar mais nessa escala e quanto mais medo temos, mais utilizamos clichés discriminatórios. Tenhamos um pouco mais de auto-estima, respeitemos os outros, comparemo-nos com os que já nos ultrapassaram, avaliemos positivamente o que já alcançámos e empenhemo-nos, de forma organizada e eficaz, em superar as nossas limitações e atingir padrões mais elevados de desenvolvimento humano.
Não tenhamos medo. Nós todos, incluindo os imigrantes que aqui vivem, juntos somos capazes de fazer de Portugal um país mais desenvolvido, mais rico, mais culto e mais justo.

domingo, outubro 09, 2005

OUTRO LADO DA CAMPANHA AUTÁRQUICA

A recente campanha para as eleições autárquicas, em que tive a honra de me bater pela candidatura de Manuel Maria Carrilho para a Câmara de Lisboa, permitiu-me contactar pessoalmente com muitos milhares de cidadãos, participar em debates, mas também conhecer ainda melhor a cidade de Lisboa. Olhar de frente a exclusão, o abandono, o sofrimento intolerável de tanta gente, jovens, mulheres, idosos, nacionais e imigrantes, a esperança que o dia de amanhã, que nunca mais chega, seja diferente.
No decorrer da campanha pude estar em contacto com diversas formas de presença da Igreja Católica na cidade de Lisboa, levar-lhes as propostas do PS para Mudar Lisboa, mas também ver e sentir o testemunho cristão que a sua acção encerra.
Destacaria três momentos: a visita a um trabalho com crianças denominado Educação Popular no Bairro da Liberdade, em Campolide; a Residência de Velhinhos das Irmãzinhas dos Pobres, na Rua de Campolide; o debate com as diferentes candidaturas à Junta de Freguesia de Benfica realizado pela paróquia do Bairro da Boavista, em Benfica.
Visitei um outro extenso complexo social da responsabilidade da Igreja, mas não senti senão respeito pelo empreendimento, não senti o espírito da instituição. Podia ser uma empresa, uma instituição particular de solidariedade social sem inspiração cristã.
Foi a Educação Popular, na Rua da Capela, no Bairro da Liberdade que mais me tocou pelo seu profissionalismo, a preocupação com as crianças desde bebés, a preocupação em educar para o amor, o respeito, mas também para a beleza através de uma cuidada educação artística. A simpatia, a capacidade de nos saber ouvir, mas também a simplicidade com que nos foi dada informação sobre a sua ordem, a Congregação das Irmãs do Amor de Deus tocaram-me profundamente e por isso mesmo quero deixar um obrigado à Irmã Nazaré. Foi, estou certo que não apenas para mim, um testemunho do Amor de Deus.
Na visita à Residência de Velhinhos das Irmãzinhas dos Pobres o clima foi mais reservado, embora mais distendido à medida que se trocavam impressões sobre a forma como entendem o acolhimento e o cuidado com as pessoas idosas pobres. Vê-se que há uma preocupação genuína com as pessoas idosas, não apenas uma organização e uma limpeza exemplar, mas uma nota que sensibilizou alguns de nós, o facto de incentivarem a participação solidária dos idosos em algumas das tarefas que asseguram a qualidade de vida na Residência. A reserva a que aludi das Irmãs tem a ver com uma preocupação de não criarem dependências de ninguém, benfeitores privados ou instituições oficiais, mas a visita terminou de uma forma mais cordial tendo alguns de nós procurado saber mais sobre o carisma e a acção desta ordem e recebido a informação que nos deram.
Diferente foi o debate organizado numa das últimas noites de campanha eleitoral no Bairro da Boavista pela paróquia local e para o qual foram convidados todos os candidatos à Junta de Freguesia de Benfica. É uma paróquia recente, com poucos meios, mas activa. Quando chegámos um camarada, que julgo que não é cristão, disse-me logo que tinham organizado já uma linda procissão e um convívio cultural.
O debate foi aberto pelo Pároco que explicou o valor positivo com que a Igreja encara a participação política, lendo um longo e interessante texto do Papa João Paulo II. Depois convidou os presentes a acompanhá-lo na oração de São Francisco de Assis, tendo sido seguido pela maioria dos presentes, militantes dos diferentes partidos. Usaram da palavra os candidatos do PS, PSD, CDS e um representante da CDU. Apenas o Bloco de Esquerda não se fez representar O debate foi, por vezes, tenso, reproduzindo a conflitualidade existente nalgumas áreas do bairro, estimulado pelo estilo adoptado pelo candidato do PSD. O pároco foi moderando o debate, as pessoas ficaram com a sensação de que poderia ter sido mais interessante, mas louvaram a iniciativa da paróquia.
Ao referir este lado da campanha gostava de acrescentar que como católico senti que as Irmãs das instituições que visitámos e o Pároco da Boavista transmitiram uma imagem da sua acção que foi sentida como positiva por mim e estou certo que pela maioria dos camaradas com quem estive nestas acções da campanha.
Estou certo que, do ponto de vista eleitoral, são visitas e acções pouco rentáveis, mas têm um papel muito importante aproximar a experiência humana e social de pessoas que no dia-a-dia raramente se cruzam.

domingo, outubro 02, 2005

ESCRAVA ISAURA

A versão da série televisiva brasileira “Escrava Isaura”, actualmente em exibição na RTP1, aborda a época da escravatura no Brasil. Muitas pessoas me têm manifestado o choque que lhes provoca o descobrirem, através das imagens da televisão, como foram possíveis formas de tratamento tão desumano e degradante. Indigna qualquer pessoa bem formada, por exemplo, o facto de ter sido possível amarrar outros seres humanos a um tronco e chicoteá-los até à morte, de alguém se considerar proprietário de outros seres humanos e de os comerciar como qualquer outro bem e se apropriar dos filhos das escravas, ao ponto do pai da escrava Isaura, que era um homem livre, ver recusada a possibilidade de comprar a filha para a tornar livre.
A escravatura foi uma situação de uma imensa brutalidade e violência de que esta série é apenas uma modesta ilustração.
Poder-se-á dizer que depois disso em pleno século XX, tivemos os campos de extermínio nazis e os gulags ou chamar a atenção para o sofrimento dos imigrantes que procuram atingir a Europa mesmo com risco de vida, como está acontecer actualmente em Ceuta. Tudo isto existiu ou existe, mas isso não nos dispensa de nos confrontarmos com a escravatura, já que ela está entranhada no nosso passado histórico e deixou marcas que não foram totalmente erradicadas. Daí que seja um serviço público emitir uma série televisiva como “A Escrava Isaura”.
Como escreveu Rysard Kapuscinski: “O comércio de escravos durou quatrocentos anos começou em meados do século XV e acabou, oficialmente, na segunda metade do século XIX. Há excepções porque no norte da Nigéria só acabou em 1936 (…). Os traficantes de escravos (sobretudo portugueses, holandeses, ingleses, franceses, americanos, árabes e os seus aliados africanos) despovoaram o continente e condenaram-no a vegetar apaticamente. Ainda hoje há faixas do território africano completamente desertas. África ainda não se recompôs deste pesadelo, desta enorme tragédia”, no seu livro “Ébano, Febre Africana”, Ed. Campo de Letras, 1998, pp. 98-99, cuja leitura se recomenda.
O colonialismo e a escravatura mudaram irreversivelmente o relacionamento entre povos e continentes. De acordo com Stephen Castles: “O colonialismo implicou a emigração além-mar de europeus, na qualidade de marinheiros, soldados, agricultores, comerciantes, padres e administradores. A mão-de-obra colonial foi conseguida primeiro através de migrações forçadas de escravos africanos (cerca de 15 milhões entre os séculos XV e XIX) e, mais tarde, através da utilização de serviçais, que eram transportados através dos impérios coloniais, atravessando enormes distâncias.”, no seu livro “Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios, dos Trabalhadores Convidados às Migrações Globais”, Ed. Fim De Século, 2005, p.25.
Por tudo isto, A Conferência Mundial das Nações Unidas “Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Conexa”, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001, chegou a acordo sobre um texto que reconheceu e lamentou profundamente o enorme sofrimento humano e a trágica situação de milhões de homens, mulheres e crianças em consequência da escravatura e do tráfico de escravos transatlântico, do apartheid, do colonialismo e do genocídio. Tendo convidado a comunidade internacional a honrar a memória das vítimas dessas tragédias, a Conferência referiu que alguns Estados tomaram a iniciativa de lamentar ou expressar remorso, ou de apresentar desculpas, e pediu a todos os que ainda não contribuíram para que a dignidade das vítimas fosse restabelecida que encontrassem formas de o fazer.
Temos de reconhecer que pouco foi feito para dar a devida concretização às decisões da Conferência, que tiveram o voto favorável de Portugal, a cuja delegação tive a honra de presidir.
Temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que os netos de todos, esclavagistas e vítimas, nasçam e vivam juntos em condições de plena igualdade de oportunidades, valorizando o outro no que ele tem de livre e diferente.
Para que assim seja é preciso banir todas as formas de discriminação racial, considerar hoje a escravatura como um crime contra a humanidade, como deveria ter sido sempre considerado, mas é também importante fazer a história desse passado na perspectiva das vítimas, perceber o caminho que começa na escravatura, passa pelos serviçais até ás actuais relações de trabalho. Seria útil que a RTP1 realizasse, por exemplo, uma série televisiva sobre os escravos e os serviçais em Portugal e nas colónias portuguesas.
É preciso, sobretudo, educar e criar condições para o respeito pela dignidade de cada ser humano, para o diálogo e a cooperação. Somos todos gente, com direito a aspirar a viver em paz e a procurar realizar a vida que trazemos dentro de nós.